Luiz Felipe Anchieta Guerra
Igor Tadeu Camilo Rocha

Vivemos cercados de incertezas, em meio a uma crise sanitária, econômica e política sem precedentes em nosso país, mas uma coisa é certa: hoje é o último dia de março. O temido 31 de março, que ainda nos assombra na memória recente, especialmente no contexto atual. Apesar disso, como é sabido, esta data ainda é o centro de diversas polêmicas e disputas narrativas, a começar pela própria data. Mas de longe a maior dessas disputas é centrada no significado do evento em si: revolução ou golpe? O 31 de março é uma data a se comemorar?

Se para muitos de nós a resposta é um óbvio e retumbante NÃO, para outros, incluindo o governo federal, a coisa pode ser muito diferente. Querer celebrar um golpe ditatorial é, em si, uma afronta a qualquer democracia respeitável e prova de que o tal “julgamento da história” não é tão implacável como dizem por aí. Além disso, obter permissão judicial – para que tal celebração tenha cunho oficial – é forte sintoma do famigerado negacionismo e a coroação da vitória de uma disputa narrativa na qual a História é mera questão de opinião.

Mas qual o nosso papel, como pesquisadores, estudantes ou professores, diante disso? E, mais relevante aqui, qual o lugar dos estudos medievais e do medievalismo nesse processo? Já acostumados a receber críticas de nossos pares por supostamente “nos aproveitarmos da onda” em nossas análises e comentários, arriscamos aqui, mais uma vez, a nos manifestarmos sobre questões muito atuais, pois cremos não ser o silêncio a melhor alternativa.

O Lixo da História

As pessoas dizem que a história é escrita pelos vencedores, mas na verdade a história é escrita pelos historiadores, e a maioria deles são perdedores.
Deus

Não faltaram, nas últimas semanas, charges e declarações sobre o famoso Lixo da História – uma das muitas versões do mito de um julgamento definitivo da história, que faria justiça pelos erros do passado. Esse seria o lugar reservado, na memória, para todos os tiranos, sádicos, malfeitores e, principalmente genocidas, independentemente do fato deles terem, ou não, durante sua vida enfrentado alguma consequência por suas ações. Seria, então, uma reparação quase kármica para todos aqueles injustiçados que permaneceram desamparados.

O Lixo da História

Por mais belo e inspirador que seja esse prospecto, quase um alento em tempos tão sombrios, de acreditar que quem ri por último ri melhor, é importante que nos perguntemos se não se trata apenas de uma covardia travestida de revolta. Um mecanismo para fugir das questões éticas de simplesmente cruzar os braços. Delegar ao futuro essa responsabilidade é, muitas vezes um privilégio de quem não se vê afetado pessoalmente pela conjuntura. Seguindo o exemplo de Pilatos, aqueles com capacidade de agir, muitas vezes, procuram justificativas para se abster, como é o caso com alguns veículos de nossa imprensa.

Pilatos, no caso, pode ser uma alusão à potencialidade de agir para se modificar positivamente a realidade, da qual se segue uma recusa de se tomar parte da mesma ação, que é delegada aos outros. Talvez ele sirva de arquétipo para pensarmos nesse papel da história nas sociedades humanas e também na própria função do historiador como agente de disputas narrativas sobre o passado.

O suposto “julgamento da História” necessariamente se baseia em concepções já há muito rejeitadas pelos historiadores. Principalmente a da existência de uma “vera História”. Uma história metafísica que seria um ente que paira sobre as sociedades humanas e que, em algum momento, coloca cada qual em seu lugar, legando glória a alguns, desgraça a outros, e esquecimentos nas suas incontáveis gradações ao restante.

Concepção essa que parece ignorar o fundamental elemento humano da construção do passado. Em outras palavras: essa concepção ignora que narrativas históricas são feitas por pessoas no espaço/tempo de acordo com suas experiências, dentro das quais se compreendem realidades, disputas, contradições, tensões e tudo o mais que for próprio das relações entre pessoas e sociedades.

Além do mais, essa “justiça histórica”, curiosa e contraditoriamente localizada fora da história, também parece ser absoluta e em certo sentido, atemporal. Ela, imparcial e inevitavelmente atuará, cedo ou tarde, a despeito das dinâmicas dos indivíduos e instituições. E não somente essa justiça é absoluta, como toda sua elaboração se baseia em valores e categorias postas nesses mesmos termos: a verdade histórica, por exemplo, existiria ainda que aqueles que no futuro serão julgados a tenham ocultado de tudo e todos; os valores, segundo os quais o julgamento será feito, são perenes; a própria função, a rigor, desse julgamento, seria um implacável progresso da humanidade rumo a um futuro melhor, do ponto de vista ético, moral ou mesmo racional.

Aqui vemos, então, um descompasso. A história acadêmica como conhecemos, nos últimos 150 anos pelo menos, é concebida de maneira bem distinta. Embora alguns poucos possam discordar, ela é majoritariamente interpretada como resultado do confronto de narrativas produzidas por pessoas ao longo do tempo – feitas com base material em fontes históricas e que se desenvolvem possuindo como norte a obtenção de uma “verdade” sobre o passado. Essas construções de narrativas históricas são necessariamente mutáveis, móveis como as sociedades humanas: de tempos em tempos, os historiadores se deparam com novas fontes ou novas leituras. Essas problemáticas também atendem a demandas sociais pelo passado, buscando informações a serem mobilizadas na construção de identidades, expectativas com o futuro e inspirações para agir no presente.

Daí costuma-se simplificar a questão no mote “a história é contada pelos vencedores”. Essa premissa traz em si um elemento bastante verdadeiro: hegemonizar uma versão do passado é também exercer influência sobre o presente, e isso se sustenta nas relações sociais de poder. Ao mesmo tempo, grupos marginalizados trazerem para o centro das disputas pelo passado suas próprias interpretações sobre ele também significa conquistar espaços e se fazer ouvir mais e mais. Tendo em vista tais premissas, podemos problematizar melhor a “história contada pelos vencedores”.

Golpe ou revolução: uma questão de ‘opiniães’?

Ora, se existe uma inescapável justiça histórica e uma memória sempre ditada pelos vitoriosos, por que temos nazistas até os dias de hoje? Por que pessoas ainda defendem a memória do regime militar brasileiro e até mesmo pedem por uma nova ditadura? Bom, podemos dizer que em ambos os casos o “julgamento histórico” não existiu, e nada indica que ele acontecerá em algum momento. Pelo contrário, ele aparenta ter sido derrotado nas urnas em 2018.

Por sua vez, pensando na história como uma constante disputa, talvez os valores sociais que gestaram o nazismo e a ditadura brasileira ainda permaneçam vivos: o nacionalismo, racismo e antissemitismo do primeiro são vistos de tempos em tempos na Europa, e hoje ganham formas bem definidas: de fóruns na internet a partidos de extrema direita – alguns, como nos casos da Polônia e da Hungria, até chegaram ao poder. Já quanto ao segundo, é difícil pensar que a sociedade brasileira se modificou muito, dos anos 1960 pra cá, a ponto de ela já não se parecer mais com a mesma concebida sob o prisma da casa grande e da senzala: na qual a busca por privilégios e pela “proteção” contra uma maioria negra, marginalizada e brutalizada – oriunda da maior sociedade escravista do mundo – gerou uma elite e classes médias autoritárias e insensíveis, uma sociedade desigual e um sistema corrupto assentado numa economia patrimonialista de privilégios que se perpetua de geração em geração.

Quanto à ideia de uma história narrada apelas pelos vitoriosos, podemos nos perguntar: “os nazistas não foram, literalmente, derrotados?” “O Brasil não foi redemocratizado e teve décadas de governos críticos ao regime?” Essas e outras aparentes incongruências nos levam a questionar a própria ideia absoluta de vencedores e derrotados dentro da narrativa histórica. Esses dois conceitos, embora aparentemente intuitivos, escondem uma verdadeira gama de complexidade.

Vitórias e derrotas vêm em diversas formas, tamanhos e sabores e é possível que um mesmo ator histórico se enquadre simultaneamente nas duas categorias dentro de diferentes perspectivas. Por vezes os vencedores são aqueles que passam despercebidos. Nossos militares talvez tenham sido, sim, os grandes vencedores da ditadura, a despeito de todas as tentativas dos últimos governos de julgar essa história. Eles conseguiram assegurar uma transição diferente dos nossos vizinhos, se isentando de qualquer responsabilidade e conduzindo com as próprias mãos o processo de reabertura.

Dessa forma, em termos de seu legado, a ditadura brasileira pode ter sido uma das mais eficientes da América do Sul. Ela conseguiu efetivamente colocar em xeque, no senso comum, sua própria existência dentro da narrativa histórica. Eficácia essa semelhante àquela observada em aspectos do processo colonial do Brasil, cujo grande mérito talvez ainda seja os incessantes esforços para se apagar a própria ideia de uma relação colonial com Portugal, muitas vezes amenizada dentro de narrativas de coexistência e diversidade que acabam silenciando a violência do processo.

O Brasil tem tradição de apagar seus brutos: o fascistóide Vargas é exaltado até hoje como pai dos pobres: uma impressionante vitória narrativa.

Vargas: de entusiasta do fascismo a herói de algumas esquerdas

Grande parte dos países que viveram, em sua história recente, regimes autoritários e violentos, repudiam esse passado. Pelo mundo, ex-ditadores foram julgados e punidos, e não é incomum a existência de leis ou ações governamentais para coibir ou punir quaisquer manifestações apologéticas a seus regimes, como é o caso no Chile e na Alemanha. Enquanto isso, por aqui, não fomos sequer capazes de responsabilizar, quiçá punir, os torturadores desse período, e, como sociedade, permitimos que eles sejam homenageados por representantes do poder público. Como podemos, assim, defender a existência de qualquer coisa similar à uma “lata de lixo da história”? Se ela existisse, lá estaria Brilhante Ustra junto a tantos outros monstros, mas as coisas nunca foram assim tão simples. Talvez seja melhor, como defensores da democracia, admitirmos que perdemos e que a história e a memória não se resolvem sozinhas.

Passados paralelos

Se as pessoas soubessem o que aconteceu na Copa do Mundo, ficariam enojadas.
Jogador Leonardo

Não que não existam aqueles que exaltam as truculências do passado e os porões da ditadura, nosso presidente já foi um deles. Mas em sua forma mais mainstream, essas disputas narrativas se pautam pelo negacionismo.

Para sustentar a comemoração do 31 de março é necessária a existência de um passado paralelo, uma contra narrativa. Da mesma forma que os negacionistas do holocausto e da inquisição, por exemplo, também requerem passados paralelos. Tratam-se de outras narrativas que não apenas coexistem com a dita história amplamente aceita, mas muitas vezes baseiam toda sua fundamentação na existência dela.

Essas narrativas costumam se consolidar através da difusão junto a uma parcela do senso comum, relativizando e repetindo alguns elementos-chave até que eles sejam normatizados. Por exemplo, a ideia de que não havia corrupção durante a ditadura militar, ou que o regime foi muito bom para a economia. Elementos esses que – muitas vezes embasados em relatos anedóticos – não necessariamente contradizem aspectos centrais da historiografia sobre o período, como a existência de perseguições políticas. Assim, essas narrativas podem crescer paralelamente às versões oficiais, evitando conflitos diretos e escusando quaisquer divergências mais aparentes como mera questão de opiniões.

Uma das principais narrativas paralelas: o perigo vermelho no governo Jango.

Uma vez que suficientemente disseminadas, essas narrativas vão se consolidando de maneira cada vez mais distinta da historiografia, passando então divergir dela mais diretamente e a construir argumentos conspiracionistas que buscam deslegitimar os historiadores e criar toda uma fantasia de resistência ao apagamento e divulgação de uma “verdade oculta”. Se tornam assim, verdadeiros passados paralelos. Um dos mais famosos negacionistas do Holocausto, Robert Faurisson escreveu em 1980:

As alegadas câmaras de gás hitleristas e o alegado genocídio dos judeus constituem uma única e mesma mentira histórica, que tornou possível uma gigantesca fraude político-financeira, cujos principais beneficiários são o Estado de Israel e o sionismo internacional, e cujas principais vítimas são o Povo alemão – mas não seus líderes – e todo o povo palestino.

As alegadas câmaras de gás hitleristas e o alegado genocídio dos judeus constituem uma única e mesma mentira histórica, que tornou possível uma gigantesca fraude político-financeira, cujos principais beneficiários são o Estado de Israel e o sionismo internacional, e cujas principais vítimas são o Povo alemão – mas não seus líderes – e todo o povo palestino.

Com o passar do tempo, essas posições acumulam seus próprios “intelectuais” e teóricos, que passam a defender suas posições e promovê-las de maneira cada vez mais institucionalizada, por meio de publicações e outros tipos de material. Com isso é apenas uma questão de tempo até que elas tentem se transplantar para dentro da academia e consolidar sua posição como nova versão amplamente aceita. Isso pode ser claramente observado no caso do recente periódico acadêmico editado pela organização radical-católica Ordo Iuris, na Polônia.

Essa disputa narrativa, entretanto, não se limita apenas ao presente negacionismo. Pelo contrário, se nos debruçarmos sobre o 31 de março, veremos uma disputa dentro de outra. Para além dessas construções do passado alternativo da suposta “revolução de 64”, existe também uma disputa narrativa que pauta o golpe em si. Uma das principais bandeiras golpistas consistia na suposta restauração de valores que seriam inerentes à própria civilização ocidental: a família, a tradição e o cristianismo.

A Marcha da Família com Deus pela Liberdade levou milhares de brasileiros às ruas e é considerada um dos estopins do golpe de 64

Esses valores eram, por muitos de seus teóricos – principalmente aqueles ligados à tradição católica, como Plínio Corrêa – traçados até um período de suposto apogeu do Ocidente Cristão. Período esse localizado por alguns como sendo a própria Idade Média associação essa que aparentemente ainda vive nos protestos bolsonaristas dos últimos anos.

O medievo aqui em questão não se trata, todavia, da Idade Média dita histórica, mas sim de um passado paralelo quase utópico. Um verdadeiro Éden perdido, ao qual a humanidade ansiava voltar, mas que teria sido erodido e continuamente difamado pela “degenerada” serpente da Modernidade. O próprio Plínio escreveu:  

Por isso mesmo, na época da Europa maravilhosa, nos áureos tempos da Civilização Cristã, encontramos a dor instalada no meio dos esplendores da vida, com toda a amplitude possível […] Magnífica expressão desse enobrecimento da dor, dessa superior beleza de que se revestia o sofrimento, temos os garbosos e hieráticos gizantes medievais, os grandiosos monumentos fúnebres, as estátuas representando homens cobertos de véu e carregando imponentes caixões.

Essa visão, todavia, sobre o período medieval está longe de ser aceita, ou mesmo reconhecida, pela maioria dos estudiosos sobre o período. Ela, assim como a narrativa da “revolução de 64”, nega evidências materiais e ignora séculos de debates historiográficos sobre o assunto, moldando um passado ideal para fundamentar seus princípios e objetivos contemporâneos. Um passado que não se resistiria a nenhum escrutínio acadêmico sério, mas que se sustenta, em parte, justamente por deslegitimar seus possíveis críticos. Novamente, usando como exemplo as palavras de Plínio Corrêa:

A Igreja, ao longo da Idade Média, fez a grande libertação da escravidão que houve em todos os séculos. Nunca os escravos tinham sido libertados. Só então o foram e pela primeira vez. […] Isto foi o que a Idade Média fez pelo homem não nobre nem clérigo. Acabou com a escravidão.

Medievalistas em tempos “medievais”

Será que eu sou medieval?
Baby, eu me acho um cara tão atual

Cazuza

Ok, mas o que tudo isso que vimos até agora tem a ver com medievais, medievalistas e medievalismos?

Bom, como já esboçamos nos parágrafos anteriores, esses passados paralelos e negacionismos, embora centrado em interesses contemporâneos, não se limitam aos episódios e temas da história recente. Muito menos se restringem a um passado dito nacional, pelo contrário se expandem internacionalmente reivindicando para si raízes, geralmente, europeias. Isso, por si só, já justificaria uma ampla mobilização de estudiosos de qualquer outro período histórico dentro desse debate.

Podemos ir além: existe uma verdadeira tara com o medieval. A Idade Média talvez seja um dos períodos mais mobilizados e disputados dentro das diversas narrativas negacionistas.

Essa predileção, talvez possa ser explicada pela necessidade desses movimentos de se legitimarem. Buscando assim estabelecerem uma origem e um embasamento históricos. Umberto Eco, em um de seus ensaios afirma:

a idade média está na raiz de todos os nossos problemas “quentes” contemporâneos, e não é surpreendente que voltemos a esse período cada vez que nos perguntamos sobre nossa origem

A necessidade de encontrar origens europeias e tradicionais sempre foi um elemento importante na formação de identidade das elites das colônias ou ex-colônias.

Um dos melhores exemplos dessa opção pelo medievo pode ser encontrado dentro da TFP (Tradição, Família e Propriedade), organização leiga conservadora ligada ao catolicismo, que surgiu durante a década de 1960 e foi muito atuante no período do golpe de 64. Como já analisamos nas palavras de seu fundador, Plínio Corrêa, a TFP sempre exaltou suas aspirações medievalescas, mobilizando-as contra seus mais diversos inimigos, que se modificaram ao longo das décadas: dos comunistas à comunidade LGBT.

Oratore, Bellatore e… Comunistore? Arte da década de 1960 apresenta um cavaleiro da TFP empunhando a frase em latim: repreenda-os duramente.

Essa identidade medieval, inclusive, vai além do papel e das ideias, refletindo-se também nos comportamentos, títulos, indumentária e em toda a mise en scène da TFP. Da década de 1960 aos dias de hoje a organização sempre foi reconhecida por suas túnicas, flâmulas e brasões “medievais” contrastando com os planos de fundo super urbanos de suas manifestações.

Protesto da TFP em 2000. Não, não se trata de uma feira medieval

Em um exemplo mais contemporâneo, temos também o Instituto Lux Brasil. Autores do infame vídeo do cavaleiro das manifestações de 2020, o grupo busca se apesentar como herdeiro e defensore de uma tradição cristã conservadora europeia, e também, de maneira quase contraditória, como apologistas de valores liberais modernos. Em seu site ele se descreve como:

Deus, Pátria e Família são nossas crenças e valores fundamentais, além do incentivo e reconhecimento do(a): Estado mínimo; Pró-vida; Conservação e manutenção dos costumes e tradições; Livre mercado; Liberdade individual.

O instituto Lux promove um ferrenho revisionismo da história do Brasil, tendo como uma de suas principais pautas o negacionismo da ditadura militar e do golpe de 64. Para isso, eles fazem uso frequente de referências a esse medievalismo utópico, que vão muito além do “templário de Taubaté”. Abaixo podemos ver três cartazes produzidos pelo Lux, nos quais a figura de um cavaleiro cruzado é novamente evocada como avatar do conservadorismo e da extrema direita.

Finalmente, cabe aqui apontar uma última faceta dessas muitas reapropriações narrativas do medievo que, embora muitas vezes ignorada pelas análises, é a mais difundida delas. Trata-se do que podemos chamar de medievalismo político progressista, ou, em outras palavras, a reafirmação do velho mito de uma Idade das Trevas como forma de se exaltar a Modernidade. Vemos então o outro lado da moeda: como um passado pode ser disputado e mobilizado de maneira negativa.

Essa narrativa se apresenta nas mais diversas formas e mídias, dos livros didáticos à declarações de políticos, e por isso acaba se misturando à própria narrativa histórica sobre o período, geralmente embasada por bibliografia muito datada. Ela consiste em uma síntese rasa dos ideais iluministas, que evoca um tempo medieval sombrio e obscurantista para o qual estaríamos nos dirigindo novamente

VEJA: progressista por contraste

Um dos exemplos mais emblemáticos desse movimento nos últimos tempos pode ser observado na série de tirinhas “O Brasil medieval”, de 2016, do cartunista André Dahmer. Nesses cartoons, as personagens são homens vestidos de cavaleiros templários que discutem os rumos “medievais”, brutos e preconceituosos que o Brasil vinha tomando.

Enquanto o cavaleiro da Lux causou uma comoção nacional, aparecendo em noticiários e gerando uma enxurrada de memes, esse tipo de medievalismo progressista tende a passar desapercebido pelo público amplo, captando apenas a ocasional atenção de algum especialista. Evidenciamos assim uma comparação da eficácia atual das duas narrativas: uma delas, embora em franca ascensão, ainda causa estranhamento no senso comum, enquanto a outra consegue se mesclar na narrativa histórica mais aceita, embora reproduza igualmente uma série de construções sem embasamento algum.

Resta a pergunta: o que fazer?

Obviamente desconstruir essas narrativas e propor outras, mais criteriosas é sempre um passo fundamental. Mas não basta apenas esse caminho, e uma excessiva ênfase nisso pode levar a um resultado oposto ao desejado: uma diluição do interesse pelo tema ou mesmo um reforço das máximas negacionistas que pregam a existência de um esforço conspiratório por parte da academia para ocultar uma história secreta.

Podemos apontar também o papel da história pública e das iniciativas que visam a divulgação do conhecimento e o amplo diálogo entre a academia e outros tipos de público, por meio de blogs, entrevistas, podcasts ou simplesmente do uso de uma escrita mais acessível. Cabe aqui ressaltar o entendimento, que vem sendo cada vez mais revisitado por aqueles que se dedicam a analisar os rumos da escrita sobre o passado, de que existem múltiplos públicos e variadas camadas de escrita e apropriação socialmente difundidas da história. Dito de outra maneira, todos os grupos humanos recorrem ao passado e buscam nele elementos que sustentem suas identidades, projetos, expectativas e visões de mundo, não cabendo ao historiador, assim, o monopólio de acesso ao passado. Decerto um acesso privilegiado, a partir de um instrumental mais amplo, mas jamais um acesso completo, total ou único.

Esses talvez sejam, hoje, os principais pontos de partida para se pensar formas mais efetivas de enfrentar frontalmente esses passados paralelos. Mas é sempre importante atentar para a forma com a qual isso é feito Por um lado, é muito fácil sucumbir a um “complexo de superioridade intelectual” e uma postura condescendente em relação ao público amplo. Por outro, uma simplificação em excesso pode acabar levando à uma perigosa disseminação de desinformação, como acaba ocorrendo em muitos canais do YouTube que fazem uso do sensacionalismo para capitalizar em cima de um público mais jovem.

No afã de disputar espaços em mídias não voltadas ao público acadêmico, não é incomum ver historiadores caindo no vício de imbecilizar seu público agindo dessa forma. Outro vício se dá em pensar que a mera ocupação de plataformas como redes sociais ou Youtube por si mesma amplia os públicos e audiências dos historiadores. Sem o devido tratamento estético ou reflexão relativa à linguagem, esse movimento faz com que historiadores acadêmicos continuem produzindo para pares, só que ao invés de usarem revistas acadêmicas para isso o fazem noutros canais.

Muitas vezes desprezado por pesquisadores, mas talvez mais importante do que a própria produção acadêmica em si, está o debate da educação. Este é um terreno sempre fértil para as mais diversas narrativas, e que atualmente se encontra sob constantes ataques de movimentos como o Escola Sem Partido. A educação básica é o maior contato que a maioria da população terá com o passado histórico amplo, e é fundamental que nela sejam discutidas as construções e conflitos de narrativas, sendo estimulada a capacidade crítica dos alunos.

Além disso, cabe aos pesquisadores se mostrarem abertos a um maior diálogo com o ensino visando trazer novas perspectivas à sala de aula, mantendo os livros didáticos sempre atualizados. Dito isso, proposições como a da BNCC de 2015, por mais bem intencionadas que possam ser, acabam por prejudicar essa formação ao proporem um currículo excessivamente focado nas questões nacionais e locais, subordinando a história a uma perspectiva nacionalista, tributária de uma concepção historiográfica do século XIX. E, como vimos anteriormente, as disputas narrativas pelo passado histórico raramente respeitam fronteiras.

Por fim, acima de tudo, é fundamental se posicionar. E se posicionar também significa, nos tempos atuais, se organizar para disputar o debate público. Ou ao menos apoiar quem o faz de alguma maneira. Não se pode simplesmente aguardar um juízo futuro e seguir o exemplo de Pilatos. O fazer histórico, embora nunca possa ser neutro, deve sempre ser pautado pela ética, e cabe a nós historiadores zelarmos por isso.

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