Paul B. Sturtevant, The Public Medievalist
Trad. por Luiz Guerra*
Dungeons and Dragons é extremamente popular – provavelmente a releitura de fantasia mais popular sobre Idade Média no mundo hoje. Considerando que as edições anteriores do jogo sempre foram um pilar da cultura “nerd” mais hardcore, a atual 5ª edição de D&D (publicada em 2014) encontrou um público muito mais amplo. Celebridades do primeiro escalão jogam D&D. E jogadores profissionais de D&D – como os elencos do popular programa Critical Role do Twitch ou o podcast The Adventure Zone – se tornaram celebridades. Durante a pandemia, a popularidade de D&D só cresceu à medida que amigos e familiares procuram novas maneiras de se manter conectados.
Mas D&D também está passando por um acerto de contas há muito necessário. Como escrevi em 2017, no The Public Medievalist, o jogo conta com racismo embuído em alguns de seus aspectos centrais. Estou longe de ser o único a apontar isso. Vários outros membros da comunidade de jogadores de D&D – particularmente pessoas não brancas – têm feito o trabalho árduo de denunciar isso em meio a uma cultura de fãs que pode ser profundamente hostil às críticas. James Mendez Hodes escreveu dois artigos de leitura fundamental expondo como os Orcs são fundamentados em ideias racistas e colonialistas. Graeme Barber escreveu um excelente artigo, em fevereiro de 2019, sobre como a forma com a qual D&D lida com “meias-” raças (ou seja, meio-elfos, meio-orcs, etc.) replica ideias profundamente racistas em torno da miscigenação. Designers, jogadores e comunidades de RPGs foram às redes sociais para discutir essas questões e pressionaram a Wizards of the Coast, empresa que publica Dungeons and Dragons, para fazer mudanças.
E eles fizeram.
Em junho de 2020, eles publicaram um artigo em seu site que descreveu essas mudanças: descontinuar os vínculos entre raça e moralidade (ou seja, os orcs não são uma “raça do mal”), permitir que os jogadores separem os valores de habilidade e as raças (os orcs não são por definição, mais forte do que outros), e fazer outras alterações para remover parte do racismo óbvio de suas aventuras publicadas em consulta com leitores e consultores sensíveis. Recentemente, eles publicaram um novo livro suplementar, Tasha’s Cauldron of Everything, que dá aos jogadores a opção de separar ainda mais as habilidades de seus personagens de sua raça.
Ao que eu respondo: bom começo. Continuem.
Mas ainda há muito mais racismo imbuído no cerne de D&D – e, por extensão, todo o gênero de fantasia – que precisa ser tratado. Para começar, vamos falar sobre os bárbaros.
“Eu gostaria de ficar furioso”
Nota: Se você joga D&D e sabe tudo sobre como os bárbaros funcionam nele, sinta-se à vontade para pular esta seção. Eu não vou ficar ofendido.

Para aqueles que não jogam D&D, ao ouvir a palavra “bárbaro”, a primeira coisa que vem à mente, provavelmente, é “Conan”. E o Conan, nesse caso, provavelmente não é o das histórias originais de Robert E. Howard (que era, ele mesmo, terrivelmente racista). É mais provável que seja o Conan dos populares filmes de Arnold Schwarzenegger de 1982 e 1984 (que teve o bom senso de se livrar do racismo). Ou, se você frequenta os filões nerds mais profundos, talvez seja a edição de 1970-1993 da Marvel Comics. Mas enquanto o cimério bronzeado, sem pelos e de tanga de Arnold é a pedra fundamental cultural para a maioria das ideias estadunidenses (e brasileiras) de “bárbaro”, a versão atual de D&D parece derivar de duas fontes totalmente distintas. O primeiro são os relatos nórdicos alto-medievais sobre “berserkers”. O segundo são representações racistas de povos indígenas.
O principal fator que diferencia a classe “bárbaro” (ou seja, o arquétipo que um jogador pode escolher para seu personagem) da classe “guerreiro” em D&D é que os bárbaros podem ativar uma “fúria” intensa que lhes dá poderes especiais. Mas não é só isso que os diferencia. Enquanto “guerreiros” vêm de todas as culturas, o Livro do Jogador (um dos três livros de regras fundamentais para D&D) especifica que os bárbaros só vêm de “tribos” “selvagens” que estão fora da “civilização”.
É assim que eles são apresentados:
Um humano alto membro de alguma tribo caminha em meio a uma nevasca, coberto por peles e empunhando seu machado. Ele gargalha à medida que avança em direção do gigante do gelo que ousou caçar os alces que o seu povo arrebanhava.
Uma meio-orc rosna para o último que ousou desafiar sua autoridade sobre a tribo selvagem, pronta para quebrar seu pescoço com suas mãos nuas da mesma forma que ela fez com os outros seis rivais anteriores.
Espumando pela boca, um anão bate com seu elmo na cara de um inimigo drow, depois dirige seu cotovelo armadurado na direção do estomago de outro.
Esses bárbaros, diferentes da forma que conseguem, são definidos por sua fúria: desenfreada, inextinguível e irracional fúria. Mais que uma mera emoção, sua raiva é a ferocidade de um predador acuado, o assalto implacável de uma tempestade, a turbulência agitada do mar.
Para alguns, suas fúrias emerge da comunhão com ferozes espíritos animais. Outras provem de um reservatório turvo de raiva de um mundo cheio de dor. Para cada bárbaro, a fúria é um poder que preenche não apenas o frenesi de batalha, mas também reflexos, resiliência e proezas de força incríveis.
No cerne do D&D, há uma visão de mundo central que afirma que o mundo está dividido entre aqueles que são “civilizados” e aqueles que não são. O modo de vida “bárbaro” é, segundo o Manual, mais autêntico e “natural”.
Esses bárbaros não são apenas guerreiros habilidosos, eles são animalescos. Eles não são apenas naturais, eles são uma força da natureza.As pessoas das cidades e vilas costumam se vangloriar de como seus meios civilizados os diferencia dos animais, como se renegar sua própria natureza fosse um indicio de superioridade. Para um bárbaro, no entanto, a civilização não é nenhuma virtude, mas um sinal de fraqueza. Os fortes abraçam a sua natureza selvagem – instintos aguçados, fisicalidade primitiva e fúria voraz. Bárbaros ficam desconfortáveis quando estão cercados por muralhas e multidões. Eles crescem na natureza selvagem de suas terras natais: a tundra, selva ou pradarias onde suas tribos vivem e caçam.
Os bárbaros se sentem mais vivos em meio ao caos do combate. Eles podem entrar num estado de furor quando sua fúria toma controle, concedendo -lhes força e resiliência sobre -humanas. Um bárbaro pode consumir desse reservatório de fúria apenas algumas vezes antes de descansar, mas essas poucas fúrias geralmente são suficientes para derrotar seja lá o que está ameaçando o seu caminho.
Eles não são governados pela razão, mas pela emoção – ou pelo menos a emoção que é socialmente aceitável na estrutura da masculinidade tóxica: a raiva.
E conforme o jogador progride na classe de bárbaro, ele é solicitado que ele escolha um “caminho primordial” – uma subclasse – que dá a ele poderes especiais durante o restante do jogo. Embora mais tenham sido adicionados em livros suplementares, o Livro do Jogador apresenta dois. Um é extraído da história e mitologia nórdica: o “Caminho do Furioso”. O outro se apropria culturalmente das práticas culturais e religiosas indígenas: o “Caminho do Guerreiro Totêmico”.
Bárbaros nórdicos: Viking Berserkers
Seus homens avançavam sem armadura, eram loucos como cães ou lobos, mordiam seus escudos e eram fortes como ursos ou touros selvagens, e matavam pessoas com um golpe, mas nem o fogo nem o ferro interferiam com eles. Eles foram chamados de Berserker.
—Snorri Sturllson, saga Ynglinga, trad: Samuel Laing

Embora soem como algo retirado da literatura de fantasia, os “berserkers” são bem comprovados nos relatos nórdicos de sua história e lendas: as Sagas. Claro, muitas dessas sagas incorporam elementos mitológicos ou sobrenaturais e foram escritas centenas de anos após os eventos que descrevem. Portanto, os relatos sobre berserkers encontrados lá devem ser tomados com muita cautela.
A origem da palavra “berserker” dá uma ideia de quem eles eram para um nórdico medieval. O sufixo “serker” é bem claro – significa “camisa”. O prefixo “ber” é menos claro – significando “nu” ou “urso”. Se “nu”, isso pode ser porque eram guerreiros supostamente invencíveis que não precisavam de armadura (embora em algumas histórias eles as usem). Se “urso”, isso pode ser porque eles são frequentemente associados com a adoração de Odin e a adoração de ursos; isso pode indicar que eles usavam peles de urso, e os estudiosos os relacionaram com tradições medievais semelhantes de pessoas usando peles de lobo em batalhas.
Dizia-se que alguns berserkers tinham poderes mágicos: Bödvar Bjarki, um dos heróis da Saga do Rei Hrolf Kraki (Hrólfs saga kraka), poderia se transformar em um urso (lembra-se daquela cautela?), o que o tornava invencível na batalha:
O rei Hjorvarth e seus homens viram como um enorme urso avançou diante dos homens do rei Hrolf, e sempre próximo onde o rei estava. Ele matou mais homens com suas patas do que quaisquer cinco dos campeões do rei. Golpes e projéteis ricochetearam dele, e ele derrotou tanto homens quanto cavalos.

O traço comum menos mágico que une esses guerreiros ursos de Odin é como eles lutavam. De acordo com Arwen van Zanten em seu artigo ‘Going Berserk: In Old Norse, Old Irish and Anglo-Saxon Literature,’ eles entravam em
uma fúria de batalha que muitas vezes é incontrolável, indiscriminada e acompanhada por algum tipo de transformação selvagem. A fúria da batalha geralmente é iniciada por uivos, insultos ou ameaças diretas.
Alguns estudiosos interpretaram os relatos literalmente, tentando encontrar explicações para essa fúria da batalha. Alguns teorizaram que poderia ser induzida por drogas, enquanto outros procuraram causas psicológicas como o Estresse Pós-Traumático.
Mas também é possível que eles nem tenham existido. Berserkers eram uma espécie de personagem comum na literatura nórdica, e seu papel nas histórias mudou com o tempo. Em algumas histórias nórdicas antigas, eles são semelhantes aos bárbaros de D&D: guerreiros aterrorizantes isolados da sociedade ou bandidos particularmente temíveis. Mas às vezes eles aparecem na comitiva de um rei ou como guarda-costas pessoal do monarca. Nesses casos, eles devem ser derrotados pelo herói da história (“O Efeito Worf”) ou, ao final, tornarem-se amigos dele. Um exemplo vem da Saga de Hrólfr Kraki:
O líder dos berserkers levantou-se, perguntando a cada homem sentado diante dele se ele se considerava um igual … Então o líder dos berserkers veio até Svipdag, perguntando se ele se considerava um igual. Svipdag saltou e desembainhou a espada, alegando que não era em nenhum aspecto menos do que o berserker.
O berserker respondeu: ‘Então ataque meu capacete.’ Svipdag fez isso, mas sua espada não cortou o capacete. Os dois homens então se prepararam para lutar.
O rei Hrolf, rapidamente se posicionando entre os dois, proibiu sua luta. Ele disse que eles deveriam ser chamados de iguais a partir de agora, declarando-os “ambos meus amigos”. Assim, os dois, aceitando a igualdade, foram reconciliados. Daquele momento em diante, eles sempre estiveram de acordo, permanecendo juntos na guerra e conquistando a vitória onde quer que fossem.
Em outras histórias, eles desempenham um papel de Efeito-Worf semelhante: o berserker é um pretendente indesejado que, como escreveu Benjamin Blaney,
desafia um homem (geralmente muito velho ou muito jovem) para um duelo por sua propriedade, esposa e/ou filha. Um herói, geralmente um visitante na casa do homem desafiado, substitui seu anfitrião no duelo, mata o berserkr e assim ganha fama, fortuna e, freqüentemente, também uma esposa.
E quando o cristianismo chegou à Escandinávia e a adoração de Odin se tornou cada vez menos aceitável socialmente, o lugar do berserker na ficção também mudou – como descreve Blaney, em vez de ser morto pela destreza física do herói:
ele se torna o contraponto para os missionários cristãos que matam berserkír, convencendo assim os pagãos da superioridade de Cristo.
É difícil – talvez impossível – saber até que ponto os berserkers foram reais. Talvez eles sejam personagens comuns que assumem o mesmo papel que “O Grandão” ou “o Gigante Estúpido” desempenham em nossas ficções hoje. Mas, no geral, a adaptação dos berserkers para Dungeons and Dragons se aproxima bastante do material de origem medieval, pelo menos em termos de suas proezas em batalha.
No entanto, as descrições culturais dos “bárbaros” (e a própria palavra “bárbaro”) não se aplicam aos vikings nórdicos. Apesar do que seus oponentes possam ter achado, os vikings estavam longe de serem “selvagens”. Eles viviam em reinos rivais, não em “tribos”. O Livro do Jogador diz que os bárbaros
prosperam nas regiões selvagens de sua terra natal: a tundra, a selva ou os campos onde suas tribos vivem e caçam.
Claro, a Escandinávia é fria (embora durante o “Período Cálido Medieval” ela fosse muito mais quente do que hoje). Mas o sul da Escandinávia, onde os vikings prosperaram, estava longe de ser uma tundra. Os vikings eram sim caçadores; assim como todas as sociedades medievais. Mas eles não eram uma sociedade de caçadores-coletores como indica o Livro do Jogador. E embora vivessem no norte da Europa, não eram um povo periférico. Seu império marítimo de comércio, conquista e invasão os tornava um centro de poder. Seus inimigos cristãos os consideravam “incivilizados”, mas na realidade eram bem mais higiênicos e tecnologicamente avançados do que alguns de seus vizinhos – não menos por causa de seu contato regular com outras culturas, como os gregos bizantinos e o mundo muçulmano.
Então, o que causa a diferença?
D&D, bárbaros e racismo antiindígena

Os aspectos dos bárbaros de D&D que não se enquadram na tradição nórdica do Berserker revelam sua outra fonte mais preocupante: as representações racistas de povos indígenas. As descrições no Livro do Jogador são profundamente sintomáticas, porque foram usadas para desumanizar e justificar o genocídio de índios americanos e outros povos indígenas ao redor do mundo.
Considere, por exemplo, o uso repetido da palavra “tribo”. A palavra se origina do latim tribus e aparece, pela primeira vez em inglês no século XII, em uma descrição das doze tribos de Israel. Mas, graças a seu uso recorrente por colonizadores e antropólogos, o termo foi inextricavelmente ligada aos povos indígenas das Américas, África e das ilhas do Pacífico. As descrições do livro, que colocam os bárbaros como oriundos de:
suas terras natais: a tundra, selva ou pastagens
se encaixam perfeitamente nessa lógica. Os vikings não viviam na tundra. Mas os Sami, Inuit, Iñupiat, Yupik, Aleut e outros povos indígenas do Ártico viviam, e ainda vivem. A “selva” tem o objetivo claro de evocar a África Central como visto no Coração das Trevas ou o Caribe de Robinson Crusoe, enquanto as tribos das “pastagens” evocam os Maasai da África ou os povos indígenas das grandes planícies e pradarias da América do Norte.
E talvez o termo mais revelador de todos seja “selvagem”.
“Selvagem”
A palavra “selvagem” é a ofensa mais antiga do livro contra os povos indígenas. Ela cria um mundo dividido em dois: entre colonizador e colonizado, civilização e primitivismo e, por extensão, bem e mal. Essa divisão imaginária foi usada para justificar todas as formas de atrocidade lançadas contra os povos indígenas. Muitos europeus brancos chamavam os índios americanos e outros povos indígenas de “selvagens”, para reimaginar seus próprios atos de brutalidade, roubo e genocídio como “trazendo a civilização”. Europeus brancos também chamavam os africanos de “selvagens” para aliviar a consciência pela escravidão, estupros, assassinatos, e ataques contra sua língua, cultura e religião. Você pode observar a mesma história na Índia, no Sudeste Asiático, na Oceania e em todos os lugares tocados pelo projeto colonial europeu. Em seu livro Armies of the Raj, o historiador Byron Farwell cita um exemplo particularmente poderoso dessa ideia, em um relatório de 1855 do comissário-chefe britânico do Punjab (na Índia):
Agora, essas tribos são selvagens – nobres selvagens, talvez – e não sem algum tintura de virtude e generosidade, mas ainda assim bárbaros absolutos. … Eles têm nominalmente uma religião … [mas] aos seus olhos o único grande mandamento é sangue por sangue, e fogo e espada para todos os infiéis.
Essa ideia de selvageria indígena na guerra foi emblemática com a associação do escalpelamento com nativos americanos. Sendo que na realidade, era mais comum encontrar colônias europeias pagando recompensas pelos escalpos de homens, mulheres e crianças indígenas. Como colocou o Indian Country Today:
O governador holandês de Manhattan, Willem Kieft, ofereceu a primeira recompensa na América do Norte por escalpos indígenas em 1641, apenas 21 anos depois que os puritanos desembarcaram em Plymouth Rock. A Colônia da Baía de Massachusetts ofereceu pela primeira vez U$60 por escalpo indígena em 1703. Os ingleses e os franceses introduziram o escalpelamento aos índios. Os governadores das colônias instituíam o escalpelamento como uma forma para que uma tribo indígena pudesse ajudá-los a eliminar outras tribos e fazer com que os colonos eliminassem o maior número possível de índios.
Mas, você pode estar pensando: Conan, Wulfgar, Yasha, Grog e os bárbaros que você cria em Dungeons & Dragons são heróis, não vilões! Bem verdade. E é aí que entra o tropo do “nobre selvagem”.
À medida que as máquinas europeias de guerra e colonialismo se espalharam pelo mundo nos séculos XVIII e XIX, a ideia do “selvagem” universal cresceu e mudou. O antropólogo Ad Borsboom explica em seu artigo “The Savage in European Social Thought”:
Por um lado, o contraste com a civilização europeia foi expresso em termos negativos: nenhum progresso, mas estagnação; não civilizado, mas cruel e primitivo; nenhuma história, mas atemporalidade; não lógico, mas pré-lógico. A este respeito, os conceitos ‘Primitivo’ e ‘Selvagem’ eram antípodas da situação europeia e constituíam uma legitimação para o processo civilizatório europeu.
Mas, no final do século XVIII, ocorreu uma mudança, como observa Borsboom, reformulando essas sociedades como “Filhos da Natureza” que persistiam em um “estado natural, livre dos laços opressores da civilização”.
Assim, os povos indígenas foram romantizados. Primeiro foram os índios americanos, depois os habitantes das ilhas do Pacífico. Pensadores europeus também reconfiguraram os “bárbaros” que desmantelaram o Império Romano Ocidental, transformando-os em He-Mans germânicos hipermasculinos e passando a considerar a Idade Média europeia um modo de vida mais “natural”.
Mas os europeus foram capazes de manter em mente duas ideias contrastantes ao mesmo tempo. Os indígenas foram pintados como “nobres” e “selvagens”. Só porque os europeus ficaram nostálgicos sobre seu modo de vida anterior, não significa que eles também não pensavam que esse estilo deveria ser destruído. O tropo “nobre selvagem” é, em última instância, tão objetificante e denegridor quanto sua contraparte, o “selvagem ignóbil” – assim como todos os tropos de “Crédito à sua raça” e “Minoria mágica”.

Nos três principais livros da 5a edição do D&D (o Livro do Jogador, o Manual do Mestre e o Manual dos Monstros), a palavra “selvagem” aparece 32 vezes. Na maioria das vezes, é usado para descrever monstros humanóides, particularmente aqueles construídos como um “Outro” racial. Seu uso revela a visão de mundo embutida em Dungeons & Dragons: uma dicotomia entre “civilização” e “selvagens”, onde a selvageria, na maioria das vezes, torna algo digno de morte.
A palavra é mais frequentemente aplicada a orcs e meio-orcs. Vários ensaios (como este excelente de James Mendez Hodes) expuseram claramente como os orcs há muito são codificados como povos não brancos. Isso se aplica ao D&D e tem raízes profundas que remontam ao pai do gênero, J.R.R. Tolkien.
Mas a palavra também é usada para descrever outros monstros humanóides no Manual dos Monstros, como lobisomens, ogros e gigantes das montanhas. Minotauros são descritos como “conquistadores selvagens e carnívoros que vivem para caçar”. Mas, por alguma razão, o livro vai a diante e afirma que sua pele pode ser de duas cores: “marrom ou preto”. Aparentemente, o autor não conseguiu imaginar uma vaca branca – apesar do fato de que, no mito original do Minotauro, seu pai era um “touro deslumbrantemente branco”.
Os trogoloditas não são apenas descritos como “selvagens”, mas com outra palavra que também tem profundas raízes antiindígenas: “degenerados”. A teoria da degeneração foi desenvolvida primeiramente no século XVIII por pensadores europeus ávidos por acreditar que tudo – e todos – no Novo Mundo era mais fracos e menos capaz. Em particular, a teoria da degeneração promoveu a ideia desumanizante e racista de que os povos indígenas das Américas eram incapazes de sentir emoções. A descrição dos Trogloditas no Manual dos Monstros pode ser extraída das páginas de um teórico da degeneração, ou talvez do Comissário do Punjab citado acima:
Talvez o mais repugnante de todos os humanóides… [eles] tem uma cultura comunitária simples… Muito simplórios para planejarem mais do que alguns dias no futuro, os trogloditas dependem de ataques e caçadas constantes para sobreviver… e não mostram misericórdia com aqueles que capturam […] fazem pouco e constroem menos ainda, coletando suas posses de suas presas.

As culturas, tanto históricas quanto atuais, não podem e não devem ser consideradas mais ou menos “civilizadas”. As culturas podem ser descritas de várias maneiras: agrárias ou urbanas; nômades ou sedentárias; pluralistas ou excludentes; hierárquicas ou comunitárias e muitos mais. Mas nenhuma dessas categorias é um julgamento sobre “civilização”, porque o próprio conceito de “civilizado” vs. “incivilizado” foi inventado como uma forma de marcar outros para o extermínio. Quer um “bárbaro” específico em D&D seja um “nobre selvagem” ou um ignóbil monstruoso, a ideia de selvageria versus civilização é fundamentalmente estruturada em torno dessa ideologia genocida.
D&D e apropriação cultural indígena
Por causa de suas associações da classe com povos indígenas, as descrições no Livro do Jogador dos bárbaros como sendo orgulhosamente incivilizados e animalescos se tornam rapidamente bastante dignas de repugna. Mas somando à essa repugna existe uma enorme de apropriação cultural na forma da subclasse “Caminho do Guerreiro Totêmico”:
O Caminho do Guerreiro Totêmico é uma jornada espiritual, à partir do momento que o bárbaro aceita um espirito animal como seu guia, protetor e inspiração. Em batalha, seu espirito totêmico preenche você com força sobrenatural, adicionando combustível mágico a sua fúria bárbara. A maioria das tribos bárbaras consideram que um animal totêmico possui parentesco a um clã em particular. Em tais casos, é incomum a um indivíduo possuir mais de um espirito animal totêmico, apesar de existirem exceções.
A ideia de um “animal espiritual”, “animal totem”, “ajudante espiritual” e ideias semelhantes vêm de uma longa e diversa gama de práticas espirituais dos índios norte americanos. Tristan Picotte no blog “Partnership with Native Americans” escreve:
Em meus ensinamentos, um Ajudante Espiritual não é algo que você escolhe ou com o qual se identifica, mas sim algo que vem a você em um momento de necessidade. Talvez o animal represente algo que tenha certo valor, como a força de um touro ou a agilidade de uma libélula. [Na] cultura Lakota, é a partir desses espíritos que tendemos a associar valores a certos animais. No entanto, isso não é tudo o que eles trazem.
Ajudantes espirituais não são uma curiosidade. Eles ocupam um lugar especial e representam uma cultura espiritual mais ampla dentro de uma tribo. Muitas pessoas não perdem tempo para realmente entender isso, e a compreensão adaptada e a apropriação indébita são preocupantes e muitas vezes ofensivas para as culturas nativas.
Mas a forma como o “animal espiritual” foi apropriado pelos brancos, primeiro pelo movimento “New Age” e “espiritualista“, e depois pela cultura de memes da internet, é profundamente redutora e ofensiva. Em uma entrevista, Terry Snowball (Prairie Band Potawatomi / Wisconsin Ho-Chunk), Coordenador de Repatriação do Museu Nacional do Índio Americano do Smithsonian, explicou por quê:
Usar algo como um animal espiritual em um jogo é uma ponta de um iceberg.
As pessoas dizem: ‘Bem, o que dói se as pessoas pegam um aspecto de nossa prática ou tradição religiosa e o incorporam em outra coisa?’ É a descontextualização… Então, as coisas que são apropriadas, embora não pareçam prejudicar as coisas que você está desconstruindo, prejudicam no sentido de que diminuem o poder delas. Isso tira esse poder, porque você o está usando para outra coisa. Veja os sacramentos que você tem na igreja [cristã]. Se você os pegasse e fizesse outra coisa com eles, haveria uma controvérsia total.
Isso é ainda mais complicado pelo fato de que as crenças e práticas nativas, como a do animal espiritual, foram ativamente perseguidas muito mais recentemente do que você deve imaginar. Os nativos não tinham permissão para praticar suas religiões livremente nos Estados Unidos até 1978. Snowball continua:
Os povos nativos deste país foram perseguidos e suas práticas e tradições foram demonizados. Políticas foram implementadas para despir o “eu”. Existem várias formas de tratamento – extermínio, assimilação. Todas essas coisas representam degradações, até que a Lei de Liberdade Religiosa restaurou algumas dessas coisas, muitas dessas práticas e tradições eram praticadas secretamente.
O Sr. Snowball também discute como eles também não tinham permissão para se envolver com os artefatos sagrados que haviam sido tirados deles e colocados em museus:
A grande maioria do discurso que ocorreu foi com ocidentais: etnógrafos, historiadores, arqueólogos, antropólogos, então ele ainda é muito refém – em certo sentido, é uma espécie de propriedade, porque os índios nem mesmo podiam entrar em museus para acessar seus itens sagrados que já foram deles, dos quais foram privados.
Apesar disso, de acordo com o Sr. Snowball, as pessoas – sejam praticantes do New Age ou empresas de jogos – se sentem no direito de se apropriar da cultura nativa de uma forma que não fariam com outras partes da história:
As pessoas ficam nervosas quando os nativos dizem aos não-nativos para não fazerem algo, porque eles acham que têm direito a isso, é seu direito.
Mas vamos pegar o exemplo; se alguém fizesse um jogo sobre o Holocausto e quantas pessoas você poderia matar em um campo de concentração. Até onde isso iria como uma ideia? Tem sido uma parte tão importante da história – foi algo verdadeiramente desumano. Mas isso ocorreu mais de uma vez.
Ativistas nativos e seus aliados corrigiram publicamente celebridades que usaram mal a ideia do animal espiritual nas redes sociais. Mas uma simples pesquisa no Twitter mostra que muitos não entenderam a mensagem.
O Museu Nacional do Índio Americano do Smithsonian produziu materiais de ensino intitulados “Não é o seu ‘animal espiritual’” com o objetivo de orientar os professores a ajudar seus alunos:
As relações dos povos indígenas com os animais são o resultado de dezenas de milhares de anos de conexões com seus ambientes. O conceito não nativo de “animais espirituais” teve um aumento recente de popularidade, dentro e fora da sala de aula. Encontrar animais com os quais eles se conectam pode ser uma atividade divertida para muitos alunos. No entanto, usar o conceito de “animal espiritual” ao ensinar a cultura nativa estadunidense banaliza as relações dos nativos com o mundo animal.
E algumas tribos realmente levaram isso muito a sério. Em 1993, cerca de quinhentos líderes das Nações Lakota, Nakota e Dakota endossaram por unanimidade uma “Declaração de Guerra Contra os que Exploram a Espiritualidade Lakota”. É uma declaração poderosa que merece ser lida na íntegra. Mas, para nossos propósitos, ela condena explicitamente:
ter nossas mais preciosas cerimônias Lakota e práticas espirituais profanadas, ridicularizadas e abusadas por “wannabes” não indígenas, vendedores ambulantes, cultistas, exploradores comerciais e autoproclamados “xamãs da Nova Era” e seus seguidores
E também mostra como alguns:
exploraram as tradições espirituais de nosso povo Lakota imitando nossos modos cerimoniais e misturando tais rituais de imitação com práticas ocultas não indígenas em uma mistura pseudo-religiosa ofensiva e prejudicial
E afirma:
Por meio deste documento e daqui em diante, declaramos guerra contra todas as pessoas que persistem em explorar, abusar e deturpar as tradições sagradas e práticas espirituais de nossos povos Lakota, Dakota e Nakota.
Então, talvez, apenas talvez, o “Caminho do Guerreiro Totêmico” não deva fazer parte da classe “bárbaro” no D&D. Por causa de sua caricatura dos povos nativos e apropriação de sua cultura, tal como está, a classe bárbara é como os “The Washington Redskins” de Dungeons & Dragons. Ela deve ser mudada.
O que você deveria fazer?
→Isso depende muito de quem você é.
Se você é um indígena jogador de D&D:
Seja você mesmo, faça o que julgar melhor.
Se você é um jogador de D&D branco:
Se você não está ligado ao sistema de D&D, de uma olhada em alguns dos outros RPGs de mesa que foram feitos por nativos. Por exemplo, confira Ehdrigohr, um cenário de campanha que se descreve como:
Culturalmente, Ehdrigohr é um mundo de fantasia não tradicional. Em vez da fantasia vista através de uma lente euro-medieval, Ehdrigohr é criado para se inspirar no mito e no folclore de culturas tribais e indígenas de todo o mundo.
Alternativamente, considere apoiar o Kickstarter de Coyote & Crow, um novo cenário de RPG feito por uma equipe de criadores nativos, ambientado em uma visão de ficção científica das Américas não colonizadas:
Coyote and Crow é um RPG de mesa ambientado em um futuro alternativo das Américas, onde a colonização nunca ocorreu. Em vez disso, civilizações avançadas surgiram ao longo de centenas de anos depois que um grande desastre climático mudou a história do planeta. Vocês vão jogar como aventureiros começando na cidade de Cahokia, uma metrópole diversificada e agitada ao longo do rio Mississippi. É um mundo de ciência e espiritualidade, onde o futuro da tecnologia e as lendas do passado irão colidir.
Se você está comprometido em usar o D&D, uma das coisas realmente boas sobre o sistema é o quão flexível ele é; os livros oferecem um ponto de partida e um guia, mas o jogo é infinitamente maleável nas mãos dos jogadores. Então, só porque os guias são problemáticos, não significa que você deve interpretá-los palavra por palavra. Cada mesa tem diferentes regras da casa. Considere adotar algumas destas:
→ Se você é um Mestre, crie mundos que não estejam vinculados a uma dicotomia “civilizado/incivilizado”. Crie uma tapeçaria de diferentes culturas com atributos variados. Se alguém em seu mundo rotula um povo de “incivilizado”, certifique-se de que é claramente um antagonista e de que suas ideias são tóxicas. Ou talvez simplesmente não inclua esse tipo de pensamento.
→ Se você quiser usar a classe Bárbara, torne-a universal ao invés de específica para culturas rurais ou nômades. Talvez os seguidores escolhidos de um deus da guerra sejam abençoados com uma fúria invulnerável? Aquiles da Ilíada de Homero se encaixa no papel como um guerreiro quase invencível conduzido pela fúria, com o Brad Pitt de bônus. Lancelot se enlouquece nas batalhas algumas vezes nas histórias arturianas medievais (embora muitas vezes isso não termine bem). Ashwatthama, do grande épico indiano antigo O Mahabharata, também entra em uma fúria de batalha imparável, e ele não era nenhum bárbaro. Você tem muitos arquétipos históricos e literários para escolher.
→ Evite o estereótipo “Orc/Meio-orc Bárbaro”.
→ Elimine as palavras “selvagem” e “degenerado” do seu vocabulário.
→ Tenha muito cuidado ao usar a palavra “tribo”, pois no uso moderno ela é culturalmente específica. Melhor usar “clã” ou “chefia”.
→ Não use a subclasse “Guerreiro Totêmico”.
→ Ou, talvez, escolha outro jogo de RPG.
Se seu nome é Jeremy Crawford (ou você trabalha na Wizards of the Coast):
Obrigado pela leitura. Que bom que você chegou até aqui.
→ Não use mais as palavras “selvagem” ou “degenerado”, especialmente quando se refere a humanóides.
→ Considere renomear a classe “Bárbaro”.
→ Desfaça-se do “Caminho do Guerreiro Totêmico” e peça desculpas aos povos indígenas que você possa ter ofendido. A Rihanna fez isso. Você consegue.
→ Se você quiser incluir histórias e lendas indígenas no D&D (o que é importante, já que ninguém quer que D&D seja centrado em histórias brancas), então contrate indígenas para a equipe criativa e os capacite a representar sua própria cultura no jogo.
→ Mas quando você fizer isso, entenda que há uma enorme diversidade de Nações e Tribos Indígenas; não tente representá-los todos em uma “miscelânea”. Incentive e capacite seus criativos para que sejam o mais culturalmente específicos o possível. E não os amalgame com outras culturas, como o híbrido bárbaro nórdico/indígena.
→ No mínimo, entre em contato com o Smithsonian; como disse o Sr. Snowball, o Museu Nacional do Índio Americano tem experiência de trabalho com empresas: “Nosso museu fez parcerias com várias empresas para abordar seu uso e aconselhar sobre o que é culturalmente sensível e representações apropriadas [de povos indígenas]. Ou eles estão genuinamente tentando corrigir o que fizeram no passado, ou eles estão sendo igualmente respeitosos dizendo ‘não queremos cometer os mesmos erros que os outros estão cometendo’”.
→ Reconheça que tornar o D&D anti-racista e anticolonial vai exigir muito trabalho; pode custar dinheiro. Isso pode custar a você jogadores no curto prazo. Mas, a longo prazo, você sabe que ser mais expansivo e inclusivo não é apenas um bem moral, mas é a única maneira de garantir que seu jogo continue sendo abraçado por novas comunidades e pela próxima geração.
Boa sorte.
*Texto originalmente publicado no dia 18 de março de 2021, no portal The Public Medievalist. https://www.publicmedievalist.com/dungeons-dragons-racism-barbarian/
Isso foi fundamental e indispensável. É como ser um meio orc bárbaro, ex escravizado, orando por Ogum antes das batalhas, e ver os outros jogadores torcendo o nariz.
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