Abaixo, apresenta-se um resumo dos principais argumentos de Pierre Delooz em seu clássico artigo: Por uma sociologia da santidade canonizada na Igreja Católica, publicado pela revista Archives de Sciences Sociales des Religions em 1962. Este resumo integrou as discussões da disciplina optativa história da santidade de Tertuliano ao movimento neopentecostal no curso de história da UFRRJ.

           O artigo foi iniciado com base na premissa de que há dois mil anos um grupo social, a Igreja Católica, reconhece determinadas pessoas como santas. Ao estudá-las, o cientista social consegue compreender melhor o grupo que as investiu na condição de santas. Em seguida, tomando como referência a obra de Sarokin, o autor fez uma exposição crítica sobre a lista de santos.

           Embora seja bastante fácil definir um santo católico, uma pessoa que recebe culto oficial, é muito difícil fixar com exatidão uma lista de pessoas que fazem parte do grupo.  Segundo Sarokin, existem 3069 pessoas nessa condição. Segundo o autor, o problema é compreender como ele chegou a tal número.  Ao que tudo indica, ele teria consultado Butler[1].  No entanto, os editores dessa coleção nunca pretenderam apresentar um catálogo exaustivo dos santos católicos. Na realidade, basearam-se no Martirológico Romano, ao qual, acrescentaram outros, principalmente, os de origem anglo-saxônica.

         Soma-se a crítica sobre as fontes escolhidas por Sarokin o fato de que ele não destacado a variação existente para a designação da santidade. Delooz concluiu que o trabalho de Sarokin abriu um importante cominho para a investigação no campo da sociologia religiosa, porém ele foi mal explorado.

           Após apresentar as suas objeções ao citado trabalho, o autor começou a terceira parte do seu artigo dedicada ao modo de designar os santos. Para ele, o culto aos santos teria nascido, durante a antiguidade do culto aos mártires, que era ligado ao culto aos mortos.  Assim, em igrejas locais veneravam-se os mortos da perseguição romana.  Durante muitos séculos, os santos eram escolhidos em grupos limitados e o seu culto cuja função na promoção de um novo culto era a de pressionar o bispo.  Na maioria das vezes, o bispo cedia às pressões da comunidade e oficializava o culto estabelecendo um lugar para as relíquias do santo.

           Apenas em 1234, o papado passou a reservar para si a função de reconhecer novos santos.  Logo, a pressão de um grupo determinado de fiéis não era mais suficiente.  Era necessário fazer funcionar um complicado aparato jurídico,

“[…] dont les règles se préciseront et se compliqueront jusqu’à la constitution d’Urbain VIII, en 1634, qui formulera les normes d’une procédure encore en vigueur, pour l’essentiel, aujourd’hui. On voit don que, pour le premier millénaire, la liste des saints est celle que l’on pourra dresser, tant bien que mal, en s’appuyant sur des sources de valeurs très diverses. A partir de 993 – date de la première canonisation papale – il est possible de dresser une liste des saints désignés par le Saint-Siège. Cette liste n’est pourtant pas complète. Nous manquons de documents pour des périodes assez étendues. Ce n’est guère que depuis le début du XVIe siècle qu’on peut être assuré que la liste ne contient pas de lacunes. Mais, pour autant, tous les saints n’y figurent pas. Entre 993 et 1324, les évêques ont continué à ratifier des canonisations de type populaire. Et, dans la suite, mains personnages ont été l’objet d’un culte public indépendamment d’une intervention romaine, sollicitée seulement – et nom pas dans tous les cas – plusieurs siècles après le fait accompli.

Depuis 1634, la liste des saints et des bienheureux (distinction consacrée par la législation d’Urbain VIII) est relativement facile à dresser – encore qu’elle n’ait jamais été publiée – puisqu’il suffit de nommer ceux qui ont fait l’objet d’une proclamation solennelle, précédée par un procès devant la Congrégation des Rites.

Il ressort de cette rétrospective qu’l importe de distinguer parmi les saint, au minimum, les huit catégories suivantes :

ceux qui ont été désignés au cours du premier millénaire par une Église particulière ;

ceux qui ont été désignés par le pape de 993 à 1234 ;

ceux qui, de 993 à 1234, ont été désignés par des Églises particulières, sans intervention pontificale ;

ceux qui de 1234 à 1634 ont été désignés par le Saint-Siège selon l’ancien droit ;

ceux qui de 1234 à 1634 ont été désignés par des  Églises particulières en dépit de la réservation pontificale ;

ceux qui, à partir de 1634, ont été canonisés selon de nouveau droit ;

ceux qui, à partir de 1634, ont été seulement béatifiés;

ceux qui ont été désignés par des Églises particulières entre 1159 et 1634 et dont le culte a été ratifié par le Saint-Siège selon le nouveau droit.”[2]

           O autor defende que a divisão proposta ajuda no estudo da santidade, pois o significado de uma canonização local é diferente da pontifical do ponto de vista sociológico. A quarta pare do artigo dedicou-se à santidade e à área de cultura.

           O estudo da santidade não pode apenas envolver as questões diretamente ligadas à Igreja, pois os santos fazem parte de determinados contextos culturais que devem ser esclarecidos. No caso dos santos dos primeiros cinco séculos do cristianismo, faziam parte, pelo menos a maioria, da civilização greco-romana. Assim, foram contemporâneos de Sêneca, Tácito e Marco Aurélio, portanto, tinham a mesma bagagem cultural.  Entretanto, dentro desse grande grupo, havia um subgrupo, ligado ao núcleo inicial da religião, cujo pertencimento cultural vinha do mundo judaico.

           No caso do culto aos mártires, o modelo cultural que o inspirou veio dos meios culturais antigos, sobretudo, o proveniente da civilização helênica. Depois do III século, os santos passaram a pertencer aos meios decadentes da civilização helênica e da civilização bizantina.

           Segundo Delooz, a sua exposição sobre a diversidade cultural dos santos nos primeiros séculos serve para demonstrar como é uma tarefa dificílima, do ponto de vista sociológico, estudar a santidade; ela traz um número grande de nuances.

           A quinta da parte do artigo foi dedicada à santidade, que embora conheça uma definição jurídica, não se pode reduzi-la a esse sentido estritamente.  Em seu sentido mais lato, pode ser compreendida como um valor.

“Elle se situe donc, pour la sociologie, comme toute autre valeur, au niveau des représentations mentales collectives et doit s’exprimer en systèmes de conduites associées dans un réseau déterminé de rapports sociaux. Quel est le contenu de ces représentations mentales et quelles sont les conduites qui les expriment et de quels réseaux de rapports sociaux s’agit-il ? La sociologie d’aujourd’hui est bien incapable d’une réponse d’ensemble. Aussi faut-il circonscrire une zone d’observation d’un culte officiel dans l’Église Catholique”.[3]

           Após delimitar a santidade oficial como objeto, o autor justifica o seu recorte em função dos critérios claros, cujo principal é a existência de um culto público.  Além disso, foi destacada a continuidade dessa prática, a qual cobre um período considerável da história ocidental. No estudo da santidade, há de se considerar como um elemento importante a relação entre a memória de comunidade cristã e a santidade.  Ela não existe se não houver uma prática social para perpetuar a memória de um determinado indivíduo.  « La sainteté dépende donc du souvenir qu’a gradé une communauté de l’existence passée d’un défunt. Toute la procédure de la béatification et de la canonisation à n’importe quel palier de son évolution historique, est toujours tributaire de la mémoire que l’on garde du passé »[4].

           Subjacente à perpetuação da memória, a santidade é considerada ainda como um julgamento de valor adotado pela comunidade.  Assim, alguém só pode ser considerado como santo através do outro.  Por esse motivo, antes de tudo um santo é sempre local, em sua origem todos eles o eram. No caso do mártir, por exemplo, foi martirizado em uma determinada comunidade, que tomou para si a função de guardar a sua memória.

“Si la plupart des saints sont les saints d’une communauté locale, il faudrait noter qu’il ne s’agit pas toujours d’une espace géographique déterminé. Certains saints sont honorés par exemple par une famille religieuse et uniquement par cette famille religieuse. Mais être saint pour les autres, c’est d’abord être saint pour ceux qui ont été les initiateurs du culte. On pourrait croire à première vue, que ce sont seulement des contemporains, qui, frappés par la sainteté d’une des leurs, consacrent cette sainteté dès après sa mort. On connaît néanmoins plusieurs cas où la sainteté est attribuée à quelqu’un par des personnes qui ne l’ont jamais connu”.[5]

          Não necessariamente o promotor do culto tenha que conhecer o santo que pretende levar aos altares.  Na realidade, como o autor comprovou; o santo para ser levado ao altar não precisava nem mesmo existir. Devido a essa afirmação, foi proposta a seguinte divisão: a santidade “real”, baseada na existência da personagem e a santidade “construída”.  Para a maioria dos santos é possível obter dados objetivos acerca da sua existência.  O processo de seleção e de análise dos dados relativos à sua vida apresenta informações importantes sobre o grupo social responsável pela promoção de sua causa.  Porém, nunca se pode esquecer que, mesmo nos casos da santidade “real”, existem elementos da chamada santidade “construída”.

           No que diz respeito a essa última, o mecanismo de elaboração de sua santidade passa necessariamente pela remodelação desenvolvida “pelos outros”, nesse ponto, o autor remonta a ideia da relação entre a santidade e o papel desempenhado por grupo social em sua promoção. Outrossim, a remodelação é sempre processada levando em consideração as representações coletivas do grupo que a leva a cabo. Houve casos em que as características de um determinado indivíduo foram tão modificadas que, ao final do processo de canonização, não se pode mais encontrar nada que fizesse parte realmente do caráter desse indivíduo.  Para comprovar a sua argumentação, Delooz fez uma longa exposição de santos desse tipo[6].

           Há uma insistência do autor em escrever que as construções de santidade são fontes importantíssimas para o conhecimento do grupo social que as produziu.  A postura do autor em repetir essa afirmação está relacionada ao fato de que ela abre a possibilidade para a discussão do conceito de “energia social” (énergétique sociale).  Como explicar que determinados santos deixaram de ser locais e tiveram o seu culto difundido?  Para responder esse gênero de questão, o autor propõe que o cientista social preste atenção nas seguintes proposições.

“Il faudrait aussi, pour analyser la sainteté dans l’opinion des autres, déterminer les rôles que les gens font jouer aux sains. On y découvre au moins cinq séries de rôles bien distincts : celui d’intercesseur, celui de modèle idéal au sens de Linton, celui de témoin de la communauté, celui de puissance bénéfique et celui de personnage promu au sommet de la réussite morale et religieuse”.[7]

           Cabe ressaltar que cada série dessas merece uma análise aprofundada, a qual revelará detalhes da comunidade cristã a ela relacionada. Nesse ponto, o autor propõe discutir a ação de determinados grupos sociais na promoção de uma santidade.  No primeiro milênio do cristianismo, bastava a opinião de um grupo para assegurar a santidade de alguém.  Com a introdução do processo canônico, pode-se criar a impressão de o processo desempenhe uma função de bloquear os movimentos de culto espontâneos.  Embora tenha essa função, não evitou que santos completamente desconhecidos e, às vezes, inexistentes fossem canonizados.  Tal constatação conduz ao debate sobre a importância da organização de grupos sociais para fazer o processo chegar ao fim, conseguindo o culto público.

           Também não se pode afirmar que apenas a organização de um grupo social de pressão possa garantir uma canonização, pois se encontram diversos exemplos ao longo da história de Igreja de poderosas instituições que não conseguirem canonizar um santo. Afinal, ao lado da pressão consciente, é importante considerar toda uma dimensão subconsciente a qual não pode ser controlada pelos agentes da promoção da santidade.

           Do ponto de vista pragmático, não se pode afirmar que a perpetuação da memória e a pressão de um grupo organizado consigam produzir um santo.  Isso é muito válido para os últimos séculos, pois a obrigatoriedade do processo trouxe um lado jurídico que não pode ser negligenciado.  No entanto, através da referência à pesquisa de Durkheim, Delooz ressalta que a decisão final pela canonização de alguém não é da espefa do direito, mas sim do poder executivo exercido pelo papa.

“Il y aurait donc une étude de droit public à mener pour voir quelle est la distribution des pouvoirs dans l’Église catholique. On verrait sans doute que la centralisation de l’exécutif et du judiciaire a suivi une évolution séculaire et que la séparation de ces deux pouvoirs n’a jamais été réalisée. Il s’en suivrait donc que la procédure judiciaire de la canonisation aboutirait toujours à une décision extrajudiciaire d’ordre politique”.[8]

           A sexta parte do artigo trabalha com as coordenadas especiais da santidade jurídica. Nessa parte do texto, o autor retoma os principais passos do processo de canonização, sobretudo, a forma como estava organizado durante o início da segunda metade do século XX.  Na primeira parte, encontra-se o exame de toda a produção intelectual de um candidato à santidade.  O procedimento parte do pressuposto do que a obra de uma pessoa revela a forma como ela vê o mundo.

           Durante a sua análise sobre a função dos textos na composição de um processo canônico, o autor apontou diversas situações em que um candidato teve o seu processo arquivado em função de algum texto considerado como impróprio para um santo.  Realmente, o exame de um texto pode definir a santidade de alguém?  O autor responde negativamente a essa resposta, pois para contornar qualquer impedimento, a Igreja costuma alegar que o candidato teria morrido em martírio; esse tipo de morte garante uma complacência. Na realidade, a morte em martírio apaga qualquer eventual mácula que um candidato possa ter.

           A segunda etapa consiste no exame das virtudes heroicas do candidato. Em tese, averiguar-se-ia se a pessoa praticou as virtudes teológicas e as cardeais.  Do ponto de vista da sociologia, cabe a interrogação de saber o porquê que foram essas as virtudes que asseguram a santidade.  E ainda questionar, não tomando como referência a virtude, a estrutura social que a produziu.  Ao se colocar tais questões, o autor destacou que embora as virtudes pareçam imutáveis, sofrem adaptações de acordo com o candidato à santidade.  Na verdade, tudo depende do grupo que examina a vida da pessoa.

           Dentro do quadro da composição do processo, destaca-se a categoria de mártir.  Conforme já escrito, uma pessoa pode ser declarada santa, sem apresentar os seus escritos e sem atestar as suas virtudes, desde que ela morra em martírio.

“La notion de martyre et le sens du mot martyr on a changé plusieurs fois au cours des deux millénaires de l’histoire chrétienne. Les représentations mentales collectives, liées à la situation de la société chrétienne, se sont modifiées avec cette société qui évoluait. Les premiers saints sont tous des martyrs au sens où ils sont victimes d’une persécution sanglante”.[9]

          O primeiro destaque feito diz respeito à existência de diversos santos, considerados como mártires, mas que não tiveram morte violenta e nem foram perseguidos. Na verdade, ao se analisar a vasta gama de santos considerados como mártires, só seria possível estabelecer uma conexão entre eles; a de que foi a Igreja católica que os considerou dessa forma.  Novamente, o autor destacou o caráter instável do conceito, sublinhando que, no final, é a própria Igreja a responsável por definir o tipo de santidade de um santo.

        Em seguida, coloca-se uma série de questões sobre os milagres. Em tese, a Igreja estabeleceu como ponto obrigatório a comprovação dos milagres. Seria interessante tentar compreender as regras jurídicas para a atestação de um milagre, ao mesmo tempo em que se fizesse uma história delas. Além disso, cabe o questionamento dos casos de pessoas que foram elevadas aos altares sem nunca terem tido qualquer milagre comprovado.

“Il y aurait à se demander quels sont, par exemple, les présupposés qui autorisent un groupe social à inclure le miracle dans une procédure juridique. On y repérerait au moins les suivantes : a) le groupe social pense que le miracle est possible ; b) il pense qu’il a des miracles qui arrivent réellement ; c) il pense qu’il a moyen de distinguer un fait miraculeux d’un autre ; d) il pense qu’il a un lien entre le miracle et la sainteté d’un personnage défunt (on ne prend guère en considération que les miracles qui se passent  après le décès du candidat à la sainteté). L’Église catholique voit donc dans le miracle un révélateur de sainteté, c’est-à-dire qu’un événement peut signifier pour d’autres qu’une personne donnée est intervenue dans cet événement au titre de sa sainteté. Le miracle est donc, dans notre perspective d’enquête sociologique, un événement social, puisqu’il ne peut exister comme miracle que s’il y a quelque’ un pour le considérer comme tel, mais cet événement exprime aussi la qualité de saint de celui qu’est présumé intervenir de cette manière”.[10]

           No caso do milagre, novamente volta-se à discussão sobre a sua dimensão “real” e a “construída”. Através de uma narração considerada como “real”, um grupo social, elabora uma outra narrativa imaginária. Nesse caso é importante que se conheça as regras dessa formulação.

Referências bibliográficas

[1] ATTWATER, BUTLER e THURSTON. The live of the saints. 13 Vols. London: Burns Oates and Washbourne, 1926-1949.

[2] DELOOZ, Pierre. Pour une étude sociologique de la sainteté canonisée dans l’Église Catholique. Archives de Sciences Sociales des Religions. Paris : CNRS, Année 7, nº 13, p. 17-43, janvier-juin 1962, p. 19-20. No que diz respeito ao novo direito, o autor citou, em nota, o cânone 2125 do Código de Direito Canônico.

[3] Ibidem, p. 21.

[4] Ibidem, p. 22.

[5] Ibidem, p. 23. Grifos do autor.

[6] Cf. Ibidem, p. 23-25. Nessas páginas são dados alguns exemplos e a indicação de outras fontes bibliográficas sobre a matéria.

[7] Ibidem, p. 26.

[8] Ibidem, p. 30-31.

[9] Ibidem, p. 36.

[10] Ibidem, p. 38.  Grifos do autor.

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