Desde o século V, apenas o império romano do oriente estava de pé, o império ocidental fragmentara-se em diversos reinos “bárbaros”.  No Ocidente, em 500, o cristianismo era a única religião pública em toda a área do Mediterrâneo; desde então, o centro de poder estava em Constantinopla[1].  O poder permanecia nas cidades, porém, eram os bispos que o exerciam de forma a tentar ampliar a ordem cristã, apesar de se verificar no século VI um movimento de construção de igrejas em regiões mais remotas, os campos ainda não apresentavam o mesmo padrão de cristianização que as cidades[2].  Entretanto, a cristianização não pode ser lida como total, na realidade, o debate religioso cristão dizia respeito à melhor maneira de acabar com as práticas “pagãs” das populações já convertidas ao cristianismo.

O sexto século foi o período em que as cidades romanas da Gália perderam a sua vivacidade; passaram a representar centros cerimoniais. Elas deixaram de ser espaços fechados e ordenados tal como foram no período romano. Agora, alargavam-se para os campos e estavam rodeadas por diversos santuários e, para além deles, encontravam-se os palácios administrativos de uma aristocracia rural[3].

O ambiente religioso do Oriente era bastante diferente. No caso dos cristãos do Oriente grego, via-se o mundo como uma triunfante vitória nascida com Constantino (imperador de 306-337).  Percebia-se o tempo presente como uma época de grande entusiasmo, pois os deuses “pagãos” e os seus templos tinham desaparecido e foram substituídos pelos homens santos e mártires[4].  Apesar da visão otimista no Oriente, isso não quer dizer que o triunfo do cristianismo fosse maior do que no Ocidente.  Na realidade, a  diferença dizia respeito à natureza dos questionamentos religiosos.   Para desenvolver estas aulas, enfatizar-se-ão as questões religiosas da época de Justiniano, bem como as relações entre o ambiente religioso do final do século VI, no Oriente, e o surgimento do islamismo, no início do século VII.

No mundo oriental, os “helenos” como eram chamados os intelectuais gregos continuavam a defender os seus deuses.  Em Atenas, até as restrições de Justiniano de 529, esses homens ensinaram com apoio do império.  A diferença estava no fato de que os líderes cristãos orientais preocupavam-se muito menos do que os líderes ocidentais com o peso do passado “pagão”.  Viviam em um império cristão que funcionava bem e isso era suficiente para persuadi-los de que a sociedade estava ordem.

Ao contrário do caso da Gália, os bispos do Oriente eram conselheiros da cidade e não um poderoso local. Assim, herdaram atribuições de um governo centralizado e foram sistematicamente introduzidos nas cidades. Acabaram por assumir funções que tinham, durante muito tempo, sido desempenhadas pelos conselhos urbanos[5].

Ao se tratar do século VI, o reinado de Justiniano (imperador entre 527 e 565) se sobressai por causa das implicações trazidas por suas ações de governo. No entanto, nem mesmo o seu governo foi capaz de impor a unidade religiosa no império, embora tenha tentado[6].

Os bispos orientais, ao administrarem as cidades, entravam em contato com aspectos pouco cristãos.  Ao transpor o espaço das igrejas, as classes governamentais estavam muito ligadas aos símbolos de poder e de prosperidade.  Desde o final do século V, houve mudanças nas atitudes das elites orientais.  Trata-se da formação de uma juventude que passou a apoiar as atividades de competição nos hipódromos das cidades.  Nesse contexto, cada cidade passou a ser dividia em dois grupos – os “Azuis” e os “Verdes”[7].  Eles eram completamente profanos que apresentavam grande rivalidade, sobretudo, nas corridas de cavalo; tinham no hipódromo um lugar para celebrar as vitórias.

“Decorria daqui um dos paradoxos da sociedade romana oriental. No Ocidente, os bispos sentiam-se cada vez mais seguros do seu domínio sobre as cidades sobreviventes, tendendo a fechar-se nestes oásis de propriedade cristã cuidadosamente mantida e a enfrentar os campos onde o Cristianismo parecia menos seguro, ou que, pelo menos, eram mais difíceis de controlar. Na Síria e no Egipto, pelo contrário, era como se as cidades, os centos de governo imperial, fossem enclaves de vida profana no meio de uma população rural temente a Deus. Ao longo do Nilo, as aldeias, que em tempos tinham crescido à volta de tempos pagãos, encontravam agora uma nova coesão no seu clero cristão e uma nova lealdade para com os patriarcas monofisistas de Alexandria”.[8]

Aliás, foram os membros do clero que transformaram o siríaco e o copta em línguas literárias importantes.  Paralelamente ao mundo urbano, surgiu uma realidade cristã nova e pujante. Apesar da separação entre o campo e a cidade no império oriental, a separação mais relevante era entre o “deserto” e o “mundo”[9]. O primeiro estava ligado às representações da vida angelical dos ascetas, já o segundo estava vinculado ao comportamento mais hesitante das pessoas mundanas.

No mundo ocidental, à época de Justiniano, havia uma convergência ente santidade e cargo eclesiástico[10]. Porém, no Oriente, acreditava-se que o espírito santo agia em pessoas que estivessem fora da sociedade, no deserto. Mas não se trata de um “deserto” impenetrável, encontrava-se a distâncias curtas.  A questão era que apenas o “deserto”, compreendido como oposto à vida organizada, poderia possibilitar aos ascetas, através de penitências e trabalho árduo, gozar da glória angelical do paraíso terrestre.

Mesmo com toda a admiração de ocidentais, como, por exemplo, Gregório de Tours (538-594) pelos santos, isso não fazia com que  procurassem o paraíso na Terra.  No Oriente, acreditava-se que as pessoas santas poderiam aproveitar da glória do paraíso ainda em vida.  Os santos “angélicos” não deixavam o mundo, afinal não interrompiam suas relações com ele.  Ao invés de fazer isso, para a imaginação dos seus contemporâneos, limitavam os problemas da sociedade através de suas orações.

Apesar dessas características, não se pode dizer que a Igreja oriental, à época de Justiniano, fosse homogênea.  Até mesmo as suas medidas enérgicas para estabelecer uma Igreja única através de Constantinopla fracassaram.  Para o homem da década de 20 do século VI, em Constantinopla, eram os indivíduos santos do deserto que satisfaziam a necessidade de solidariedade e de direção espiritual.  Como os membros do clero e, sobretudo, os bispos estavam envolvidos com as questões de diferenciação social do mundo, não eram capazes de atender aos anseios espirituais da sociedade.   Para os monges orientais, não havia diferença entre um leigo e um clérigo, pois ambos estavam ligados ao mundo.

A queda do império romano oriental era lida de forma diferenciada pelos grupos religiosos.  Os “pagãos” consideram que o fim dos cultos nos templos tinha sido o responsável, já os cristãos monofisistas[11] atribuíram a culpa ao concílio da Calcedônia.  Ao mesmo tempo, perceberam que Constantinopla não era mais a “nova Roma”, com a queda da capital ocidental, era a única verdadeira capital do império romano.  Concorda-se com Peter  Brown  que chamar esse império de Bizantino seria um equívoco, porque nega a continuidade com o império romano e, ao mesmo tempo, despreza o sentimento dos homens do século VI de que faziam parte desse império.  O próprio Justiniano investiu na sua unificação. Esse imperador e os seus contemporâneos viam-se como romanos.  Usava-se ainda o latim nas leis, embora houvesse a preocupação de fazer traduções gregas e siríacas.  Assim, a língua dos “romanos” era utilizada como a língua sagrada do Estado “romano”.

Segundo Peter Brown, durante o reinado de Justiniano, havia a ideia de que Roma tinha sido saqueada por não ter sido “romana”.  Além disso, ao se pensar no orçamento anual do império romano do oriente, à época de Justiniano, em torno de 90 000 moedas de ouro[12], tal valor só era ultrapassado pela arrecadação da dinastia Tang na China, há de se considerar que Justiniano realmente via-se como um imperador herdeiro da magnitude dos tempos de Constantino.

Além do orçamento elevado, Justiniano inovou em relação aos seus antecessores.  Diferentemente de Teodósio II (imperador 408 e 450), Justiniano foi bastante intolerante com as práticas tais como a utilizada por Teodósio II, que havia declarado a não existência de “pagãos” no império.   Na prática, isso possibilitava aos homens sábios que mantivessem as suas práticas religiosas, desde que se conservasse certa discrição. Em 528, estipulou o prazo de três meses para que os “pagãos” se convertessem ao cristianismo; em 529, proibiu os professores “pagãos” de filosofia da academia de Atenas de ensinarem em público.  Para ele, todo o conhecimento deveria ser cristão.

Subjacente às suas medidas autoritárias, teve consciência da importância de ter em mãos um código romano atualizado, pois o Código de Teodósio II não parecia ser suficiente.  Portanto, ordenou ao advogado Triboniano que, juntamente com uma equipe de especialistas, produzisse um Digesto de todo o corpo legal de Roma.  Após ter lido 1428 livros de lei, condensou-as em 800 000 palavras.

“Ao mesmo tempo, preparou-se um novo livro de ensino para as escolas de leis de Beirute – os Institutos. O Código de Teodósio foi assim actualizado pelo de Justiniano: O Codex Justinianus. Este código apareceu em 529, o Digesto e os Institutos em 533. O Direito romano que mais tarde foi restabelecido na Europa medieval, e que foi a base de todos os códigos subsequentes de direito ‘civil’, bem como do direito imperial russo que se manteve em vigor até 1917, não era um legado directo de Roma, mas sim de Justiniano. Baseava-se nas obras produzidas por um grupo de juristas de Constantinopla, dirigida ao longo de cinco trabalhosos anos por um homem decidido a testar até ao limite as possibilidades do Império que governara”.[13]

A sua reforma legislativa definiu o ritmo da década de 30 do século VI.  Criou-se, durante algum tempo, a sensação de que esse imperador era capaz de fazer qualquer coisa.  No entanto, em 13 de janeiro de 532, eclodiram confrontos nas ruas de Constantinopla.  As facções “Azul” e “Verde” uniram-se pela primeira vez.  Desejavam substituir os conselheiros do imperador e, se possível, o próprio imperador.  A repressão foi violenta e matou 30 000 cidadãos no hipódromo.

De uma forma hábil, o imperador usou a destruição causada para os seus fins políticos. Assim, a principal basílica da cidade foi substituída igreja de Santa Sofia, tratava-se de uma igreja decida à “Sabedoria Sagrada”.  Essa igreja foi consagrada cinco anos após o motim Nika e foi transformada no símbolo da devoção do imperador e como centro do mundo ortodoxo[14].

Na mesma época em que a igreja estava sendo construída, verificou-se uma grande expansão entre 533 e 540.  Cartago, a Sicília, Roma e Ravena caíram nas mãos do imperador oriental.  Na realidade, Justiniano, independentemente do seu insucesso posterior, acentuou uma tendência cuja reversão só ocorreu em 800.  Trata-se do fato de que, no início da idade média, os papas estavam subordinados aos imperadores orientais.  Até 800, todos os documentos papais enviados aos bispos e representantes das cidades eram datados segundo o ano do reinado do imperador de Constantinopla[15].

Sob o seu governo, uniram-se as bacias orientais e ocidentais do Mediterrâneo, as suas moedas de ouro, os solidi imperais, eram consideradas no Ceilão como cunhadas no maior império do mundo.  No interior do Mediterrâneo circulavam cerâmicas uniformes, que explicitam a homogeneidade econômica e do consumo de um império unificado.  Para Georges Tate, todas as conquistas desse imperador deparam-se com um inimigo poderosíssimo – a peste bubônica.   No verão de 542, chegava ao Ocidente trazendo terríveis estragos, dentre os quais o esvaziamento de cidades costeiras.  Aliás, segundo o autor, a peste manteve-se endêmica no Oriente Médio até meados do século VIII.  Para esse autor[16], apenas após o fim da peste é que se verifica o surgimento de dois novos Estados o rejuvenescido império bizantino, a partir do século VIII, e o recente califado de Bagdá.

A partir de 542, a extensão do imperial, que tinha sido uma arma importante de Justiniano, transformou-se em mais uma ameaça.  A partir de então, as mais longínquas fronteiras passaram a competir por um quinhão dos poucos recursos existentes.  Além disso, entre 540 e 628, a guerra contra a Pérsia seria um grande problema para o império oriental.

“A Itália e o Danúbio acabaram por perder frente a uma emergência formidável: sob a direcção de Cosróis I (530-579), os Persas voltaram a manifestar o desejo de juntar a Mesopotâmia à costa mediterrânica. Senhor de um vasto Império que se estendia, através do planalto iraniano, até à Ásia Central, o ‘Rei dos Reis’ persa dispunha de uma eterna vantagem militar” […][17]

Nesse contexto hostil, a estrutura imperial, a partir 550, começou apresentar falhas cujos resultados podem ser notados ao longo do Danúbio até a região Sul, junto ao Egeu.  Na época, tribos eslavas penetraram a região montanhosa do interior balcânico, chegando à Grécia e à costa Dalmácia.  Mesmo nessa conjuntura complicada, Justiniano continuou a procurar a unidade religiosa.  Estava disposto a convencer os dissidentes monofisistas a aceitarem as conclusões do concílio da Calcedônia, em 451[18].

Em meio às questões religiosas, o reinado de Justiniano ainda foi marcado pela questão dos Três Capítulos.  O papa Vigílio (537-555) foi obrigado a aceitar as novas interpretações do concílio da Calcedônia sustentadas por Justiniano.  Por causa do papel fundamental exercido do Tome do papa Leão, esse concílio foi visto pelo clero latino como sendo o “seu concílio”.  Justiniano não estava muito preocupado em agradar os latinos, a sua intenção era a de ganhar os sírios.  Nesse quadro, Peter Brown considerou surpreendente a posição dos monofisistas, que estavam próximos aos pressupostos defendidos por Justiniano, mas, mesmo assim, não foram influenciados pela tentativa do imperador de transformar o concílio da Calcedônia em algo irrelevante para os monofisistas.

Justiniano, juntamente com os monofisistas, tinha grande devoção pela teologia de Cirilo de Alexandria, patriarca de Alexandria entre 412 e 444.  No entanto, os bispos do concílio da Calcedônia, embora louvassem Cirilo tinham considerado como “ortodoxos” certos bispos que atacavam com veemência a teologia desse patriarca.  Em parte a relação com os monofisistas devia-se à sua esposa – Teodora.  Ela era uma devota monofisita influenciada pela obra de Severo de Antioquia (465-538).  Até a sua morte, o imperador conseguiu manter uma boa relação com a oposição religiosa, para Peter Brown e Jean-Pierre Valognes, a morte dela em 548, marca a perda da sua capacidade de lidar com essa oposição com a mesma eficácia anterior.

O contexto social da década de 50 do século VI foi marcado pela diminuição do poder dos bispos “calcedônios”, que estavam instalados nas cidades.  Na época, já não era mais possível exercer o mesmo domínio a partir das cidades como fora feito anteriormente.  Além disso, tais bispos eram constantemente atacados pelo “deserto” e por santos monofisistas.  Simão, o Eremita, não se submeteu ao concílio e lembrou aos cristãos que não era de um trono de um bispo onde se encontrava a santidade, mas sim nos montes[19].

Como resultado da peste na Síria, verificou-se um processo, cujo resultado em longo prazo, seria o de nivelar as cidades e os campos.  Para os monofisistas, a perda de controle das cidades não significava que estivessem assumindo uma posição marginal.  Partiram para os mosteiros de aldeias desenvolvidas.  No Egito e na Síria e, mesmo em outras regiões, redes informais tinham sido formadas baseadas nas aldeias.  Entre 542 e 578, Jacob Baradeus[20], bispo monofisista de Edessa, decidiu estabelecer uma hierarquia para os monofisistas.  Dessa forma, deixara de lutar por espaço dentro a hierarquia da Igreja única do império, criando a sua própria em sua igreja própria.

“A Igreja monofisista criada por Jacob não se assemelhava à antiga Igreja imperial. Não tinha uma estrutura celular, onde as diversas comunidades urbanas se acumulavam numa pirâmide cujo topo estava em Constantinopla. Pelo contrário, consistia num conjunto de redes regionais. As cidades e os campos eram iguais, porque se encontravam igualmente cobertos pelos compridos tentáculos de uma mesma identidade religiosa. Até as fronteiras do Império foram ignoradas; ao longo do século VI; os missionários monofisistas tinham criado aquilo que já se chamou uma ‘Comunidade’ de reinos cristãos na periferia do Império. Em 551, a aristocracia arménia rejeitou o Concílio de Calcedónia. Muito mais a sul, Axum e Núbia eram reinos monofisistas independentes, e os xeques árabes da fronteira da Síria começava a parecer como patronos de mosteiros monofisistas. O clero monofisista viajava facilmente entre os seus correligionários, desde Constantinopla até à Mesopotâmia persa. O pesado sentido colectivo de uma simples comunidade urbana ligada na celebração da Eucaristia, com que iniciámos este capítulo, deu lugar a um mundo de redes justapostas, que se estendiam às cidades, às vilas e aldeias. Por todo o Médio Oriente, calcedónio e monofisista passaram a viver lado a lado, sem se misturarem. Ambos sentiam estar mais ligados aos correligionários longínquos do que aos vizinhos ‘heréticos’ da mesma cidade”.[21]

Após a morte de Justiniano, as gerações seguintes testemunharam guerras terríveis com a Pérsia, uma escalada da violência entre “Azuis” e “Verdes” pelo fortalecimento da Igreja monofisista.  Além disso, houve um aumento da produção dos textos hagiográficos, semelhantes ao contemporâneo Gregório de Tours, no desejo de descrever os aspectos do sagrado[22].  A teologia de João de Éfeso demonstra como a santidade fluíra do deserto para as terras habitadas, o que, segundo autores como Peter Brown[23] e Albert Hourani[24] influenciariam, no século VII, uma transformação profunda no que diz respeito à religiosidade nas regiões de escrita siríaca.

“A sul das violentas terras altas da Arménia não foi uma batalha heróica, mas sim um acontecimento eclesiástico, o Concílio de Calcedónia, igualmente ocorrido em 451, que determinou a identidade futura do cristianismo que se exprimia em siríaco. A condenação dos ensinamentos de Nestório, primeiro em Éfeso e depois em Calcedónia, criou, no que se refere ao Norte da Mesopotâmia, uma barreira teológica correspondente à fronteira política que existia entre Edessa romana e Nisibis persa. Até então as comunidades cristãs do Império Persa tinham constituído uma extensão da cultura religiosa da Igreja de Antioquia. Fora o grande exegeta desta cidade, chamado Teodoro Mopsuéstia (350-428), o criador do clima intelectual que dera origem a Nestório.”[25]

A condenação de Nestório representou o esvaziamento da sabedoria de Teodoro, considerado pelos seus admiradores como o Exegeta Universal.  A partir de então, solidificou-se, na Edessa romana, o monofisismo que passou a dominar essa cidade.  Vale destacar que os monofisistas eram ferozes opositores de Nestório.  Por isso, em 489, a escola de estudantes persas dessa cidade foi encerrada.  No entanto, as igrejas persas uniram-se para defender as doutrinas de Nestório, fundando a Igreja nestoriana como ficaria conhecida junto aos ocidentais.

Existe uma relação entre o ambiente religioso do mundo romano-persa com a ascensão do islamismo?  A resposta para isso tem sido alvo de grandes polêmicas entre os especialistas.  Ao contrário do que pensavam os outros povos, sobretudo, os dos impérios persa e do romano do oriente, as tribos da península Arábica não eram formadas por ignorantes e famintos.  Durante muito tempo, tais grupos teriam funcionado como “câmara de eco” dos conflitos e das opções religiosas do Oriente Próximo, porém, traduziam-nos em termos árabes.  Durante o século VI, o confronto religioso era um elemento perpétuo entre as tribos, estendendo-se do Norte do Eufrates ao Iêmen.

O ambiente social e religioso da península Arábica teria produzido um contexto interessante em relação aos debates religiosos impostos pela ortodoxia dominante do império cristão.

“Seria Cristo divino, ou apenas humano? Seria maior do que Moisés, ou apenas um feiticeiro crucificado? Para o historiador, o que se torna notável na península arábica, cerca de 610, não é o facto de o Cristianismo e o Judaísmo serem bem conhecidos, mas de terem produzido, na pessoa de Maomé de Meca (570-632), um profeta que, na opinião dos seus seguidores e de todos os muçulmanos ulteriores, recebera de Deus a incumbência de transmitir aos seus conterrâneos árabes o juízo definitivo de Deus sobre as duas fés anteriores. A cidade de Meca e a região do Hejaz, onde Maomé cresceu (nos mesmos anos em que Columbano se instalou em Luxeuil e em que Gregório, o Grande, lamentava o estado a que Roma tinha chegado), era uma região que os próprios naturais consideravam antiquada”.[26]

Caaba, santuário local, tinha imagens de diversas tribos.  Aliás, a sua capacidade de adaptação foi ressaltada por Peter Brown, pois havia uma imagem da Virgem com o menino proveniente da Etiópia.  Devido ao seu caráter de centro religioso, transformou-se em um oásis comercial, pois diversas tribos, durante a trégua sagrada, confluíam para a região.  A tribo dominante, coraixitas, mantinha-se neutra nos conflitos e pouco se importava com o tipo de manifestação religiosa.

Esse tipo de “despreocupação” religiosa não fazia parte dos pensamentos de Maomé.  Em 610, aos 40 anos, começou a ter visões.  Nelas, o Deus Único, (Alá, em árabe) revelava-lhe que Moisés e Jesus tinham sido profetas menos importantes, por isso, Deus falar-lhe-ia definitivamente. Tais revelações foram memorizadas pelos seguidores de Maomé e, em 660, foram fixadas por escrito e passou a ter o nome de Corão.  Segundo Peter Brown, os termos Qur’an e o siríaco qeryana possuem a mesma raiz qr’, cujo significado está associado a ler, gritar alto[27].

A crença de que a voz de Deus teria falado diretamente a Maomé, imediatamente, irritou profundamente os judeus e os cristãos.  Segundo o discurso do profeta e dos seus seguidores, a luta entre as facções dos judeus e, em especial dos cristãos, tinham-nos afastados da mensagem de Deus.  Por isso, o Criador resolveu falar novamente e, definitivamente, a Maomé.

“As críticas ao Judaísmo e ao Cristianismo eram menos importantes para a sequência de revelações de Maomé do que a mensagem que dirigia aos próprios Árabes. Tinha a consciência profunda de ter sido enviado por Deus aos seus conterrâneos para os avisar, num árabe claro, de que deveriam alterar os seus comportamentos pagãos. Devia dizer-lhes que a Caba de Meca fora o local onde Abraão, o antepassado de toda a raça árabe, através do seu filho Ismael, tinha em tempos feito sacrifícios, mas só ao Deus verdadeiro. Os Qurayshis tinham-na enchido de ídolos. Ao reclamar a Caba para a sua veneração exclusiva, Maomé e os seus seguidores poderiam recuperar para os Árabes a poderosa bênção de Deus. Entregar-se-iam à vontade de Deus, tal como todas as pessoas verdadeiramente devotas tinham feito desde o princípio dos tempos. O nome adoptado pela nova religião, ‘Islame’, e a palavra usada para descrever os seus fiéis, ‘muçulmanos’, têm a mesa raiz em árabe – slm, que significa render-se, confiar num Deus. Resumiam toda uma visão de História”.[28]

Apesar das divergências, Maomé via nas ruínas de várias cidades mortas ao longo do trajeto das caravanas no deserto como uma mensagem da aproximação do Juízo Final.  A visão de Roma destruída dizia a mesma coisa para o seu contemporâneo, o papa Gregório (590-604), o Grande[29].  Embora essa explicação para o surgimento do Islamismo através de Maomé seja plausível, não é a única.   Aliás, as discussões sobre isso formam uma grande polêmica entre os especialistas.

Para Dominique Sourdel, que apesar de reconhecer certas influências do Cristianismo oriental no discurso de Maomé, relativiza as ideias de autores, como, por exemplo, as de Peter Brown, Albert Hourani e Robert Mantran[30], pois as fontes muçulmanas do século VII recusam-se « […] de parler de quelconques influences contingentes qui se seraient alors exercées sur la pensée de Muhammad, simple ‘messager de Dieu’ et transmetteur d’une vérité absolue par définition extérieure à lui »[31].

Para Dominique Sourdel, a questão não deve ser colocada sobre as influências que Maomé supostamente teria recebido, mas compreender o porquê do seu discurso ter sido aceito.  Assim, explicar-se-ia como foi formado um império tão rapidamente.

“[…] non point sur les influences religieuse externes qui pourraient expliquer le contenu du message du islamique que sur la manière dont le message lui-même aurait répondu aux exigences de la société de son époque, apparaissant ainsi, dans une certaine mesure, comme le ‘produit’ de la société qui l’avait reçu”.[32]

Além disso, Dominque Sourdel insiste nos aspectos originais do islamismo como a submissão total a Deus com uma vida religiosa caracterizada por obrigações muito restritas as preces, os jejuns, a “esmola legal”, a peregrinação e a guerra.  Em relação à guerra, há outros problemas, pois embora Maomé tenha utilizado a força contra os seus inimigos em Meca, esse recurso não pode ser lido como uma espécie de teoria sobre a guerra santa – a jihad.  Além disso, é sabido que o próprio Profeta pregou a guerra contra os seus inimigos, porém, como demonstrou Jean Flori[33], essa noção foi definida posteriormente, entre os séculos IX e XI, principalmente no que diz respeito à ideia de “guerra exterior”.

No que pesem as polêmicas, o fato é que, em 610, um homem da tribo  dos coraixitas, tribo que dominava o comércio na região de Meca, passou a declarar que recebeu uma revelação divina, através da qual se condenava a idolatria praticada na cidade.  Até 622, Maomé conseguiu converter um número grande de adeptos, embora o perfil social deles seja alvo de controvérsias[34], isso começou a gerar desentendimentos com os líderes coraixitas da Meca, pois não aceitavam as críticas de Maomé.  Isso teria levado a Maomé e os seus seguidores a fugirem para Yathrib, conhecida posteriormente, como Medina.  A fuga ocorreu em 622, o ano que marca o início do islamismo como religião.  Entre 622 e 269, Maomé e seus seguidores conseguiram se impor na região de Medina, forçando um acordo com os líderes coraixitas em 629.

[1] Para maiores informações sobre o contexto desse período. Cf. LE GOFF, Jacques. La civilisation de l’Occident Médiéval. Paris : Flammarion, 2006,.; BROWN, Peter. A ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Editorial Presença, 1999.; BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006.

[2] Cf. BROWN, Peter. A ascensão… op. cit., p. 114.

[3] Cf. GREGOIRE DE TOURS. Histoire des Francs. Livre seconde, Tome III. Texte numérisé et mis en ligne par FOURNIER, Dominique. Disponível  em: <http://remacle.org/&gt;. Acesso em 12 de novembro de 2018.  Cf. A análise feita por Peter Brown dessa fonte. Cf. BROWN, Peter. A ascensão… op. cit.; Idem. The cult of the saints: its rise and function in Latin Christianity. Chicago: University of Chicago Press, 1981.

[4] Para maiores informações sobre os mártires de Bizâncio e as suas particularidades em relação ao mundo ocidental a partir da época de Justiniano. Cf. DELEHAYE, Hippolytus. L’ancienne hagiographie Byzantine les sources, les premiers modèles la formation des genres. Collection Subsidia Hiagiographica. Bruxelles : Société des Bollandistes, nº 73,  pp. 3-68, 1991.  Trata-se de uma edição póstuma de uma conferência proferida por esse especialista no Collège de France, em 1935.

[5] Cf. Idem. A ascensão… op. cit., p. 114 et seq.

[6] Cf. LEMERLE, Paul. Histoire de Byzance. Paris: PUF, 1993

[7] Para maiores detalhes desse processo. Cf. Ibidem.

[8] BROWN, Peter. A ascensão… op. cit., p. 133.

[9] LE GOFF, Jacques. La civilisation… op. cit., p. 106.  Com base no que foi exposto por esse autor, pode-se dizer que a floresta tinha uma função análoga ao deserto dos cristãos orientais.

[10] Para uma discussão mais aprofundada sobre a santidade dos bispos na alta idade média. Cf. FOLZ, Robert. Les saints rois du Moyen Âge en Occident (VIe – XIIIe siècles). Bruxelles : Société des Bollandistes, Collection Subsidia Hagiographica, nº 68, 1984.

[11] Para maiores informações sobre as repercussões do monofisismo depois do concílio da Calcedônia, em 451, bem como as implicações posteriores, durante o século VI. Cf. FÉDOU, Michel. Monophysisme. In: LACOSTE, Jean-Yves (dir.). Dictionnaire critique de théologie. Paris : PUF, 2007, pp. 911-913. Cf. Ainda a bibliografia indicada por esse especialista. Além da questão do monofisismo, acredita-se que as dicussões em relação aos nestorianos também sejam importantes para delimitar o contexto religioso do século VI na área ocupada pelo império romano do Oriente. Para maiores informações. Cf. LANGEVIN, Gilles. Nestorianisme. In: Ibidem, pp. 957-958; ver também a bibliografia indicada.

[12] Quanto ao orçamento de império romano do Oriente, durante o reinado de Justiniano. Cf. BROWN, Peter. A ascensão… op. cit..  Em relação à arrecadação de impostos da dinastia Tang. Cf. NEEDHAM, Joseph. Science and civilization in China. 5 Vols. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. Os valores arrecadados pela dinastia Tang estão no volume II.

[13] BROWN, Peter. A ascensão… op. cit., pp. 138-139.

[14] Cf. TATE, Georges. Justinien: L’épopée de l’Empire d’Orient (527-565), Paris: Fayard, 2004.

[15]  BROWN, Peter. A ascensão… op. cit.,  p. 140.

[16] Autores como, por exemplo, Peter Brown e Paul Lemerle op. cits., concordam sobre o papel da peste como catalisadora da crise do final do reinado de Justiniano.

[17] BROWN, Peter. A ascensão… op. cit.,  p. 142.

[18] Para maiores informações sobre esse concílio. Cf. VALOGNES, Jean-Pierre. Vie et mort des Chrétiens d’Orient. Fayard, Paris: 1994.

[19] Para maiores informações sobre essa personagem. Cf. Ibidem.

[20] Para informações biográficas. Cf. RASSAM, Shua. Christianity in Iraq. London: Paperback, 2005. p. 62 et seq.

[21] BROWN, Peter. A ascensão… op. cit., p. 146. Destaque.

[22] Sobre a natureza particular dessas hagiografias. Cf. DELEHAYE, Hippolytus. L’ancienne… op. cit..

[23] Ibidem.

[24] HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.  Esse autor, de forma mais acentuada que Peter Brown, ressaltou a influência da religião de Zoroastro, através da oposição bem X mal, para maiores informações. Cf. Ibidem, p. 25 et seq.

[25] BROWN, Peter. A ascensão… op. cit.,  p. 187.

[26] Ibidem, p. 195.

[27] Cf. Ibidem, p. 196.

[28] Ibidem, p. 197.

[29] Cf. GRÉGOIRE, Le Grand. Dialogues. 3 Tomes. In: VOGÜE, Adalbert (édit.). Introduction bibliographie et chartes. Sources Chrétiennes, 254. Paris : Ed. Du Cerf, 1978.

[30] MANTRAN, Robert. Expansão muçulmana (século VII e XI). São Paulo: Pioneira, 1977.  Esse autor, como os anteriormente citados, também estabelece uma relação entre o ambiente religioso e o surgimento do discurso de Maomé.

[31] DOMINIQUE, Sourdel. L’islam médiéval. Paris: PUF, 1979, pp. 19-20.

[32] Ibidem, p. 24.

[33] FLORI, Jean. Guerre sainte, jihad, croisade : violence et religion dans le christianisme et l’islam. Paris : Seuil, 2002, p. 107 et seq.  Esse autor explica como a formulação doutrinal de jihad por meio dos juristas.

[34] Para Robert Mantran e Albert Hourani, os adpetos ao islamismo vinham, em parte das camadas mais altas da sociedade.  No entanto, Domique Sourdel critica essa postura.

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