Este texto é oriundo das notas de aula da disciplina História e Música, ministrada no nível de graduação do curso de História da UFRRJ (campus Nova Iguaçu).
Origens do “gênero” e história social
Definir um tipo de música é algo extremamente difícil, sobretudo porque se trata de uma arte na qual o envolvimento do público é intenso e extremamente amplo, se compararmos com o que ocorre em outras artes.
O mercado milionário da música e o tipo de relação pessoal que milhares de pessoas possuem com esta arte parecem ignorar os estudos acadêmicos existentes. Por outro lado, os especialistas também costumam desconsiderar como parte de seus objetos de estudo esta particularidade da música como produto de consumo massivo.
Os gêneros musicais considerados “populares” só há algumas décadas passaram a ser adotados como objeto de estudo pelos especialistas da área musical, visto que a musicologia apenas se interessava pela música erudita.
Entre historiadores, pelo contrário, é mais comum encontrar pesquisas de história social ou história cultural tendo como objeto os gêneros populares de música (embora ainda seja tímido o interesse dos historiadores pelo uso da música como fonte de pesquisa).
Em se tratando especificamente do Blues, existe ainda um horizonte imenso de possibilidades de estudo para os historiadores. Apesar do aparente consenso existente sobre o gênero (suas características, origens e motivações), ainda há muito o que fazer do ponto de vista da pesquisa em História, sobretudo se considerarmos que as informações consensuais acerca do gênero são produto das pesquisas de jornalistas, biógrafos, diletantes aficionados pelo gênero, etc.
Apesar de existirem estudos acadêmicos sobre o tema, ainda é muito raro que sejam de autoria de historiadores.
O que se pode dizer sobre a origem do Blues?
O Blues, em sua origem, foi um tipo de música rural dos trabalhadores negros das plantações de algodão do Sul dos Estados Unidos.
Ele nasceu na baía do rio Mississípi, nos campos de algodão. Era uma música através da qual o negro emitia seu desabafo, para suportar a dureza do trabalho (…) As worksongs, com todas as suas variantes, vão se sedimentar em Nova Orleans, cidade situada no delta do rio Mississipi. (Valdir Montanari, História da Música)
Eis o primeiro e mais óbvio interesse que o Blues pode despertar no historiador: a questão social e o conflito entre negros e brancos no Sul dos Estados Unidos.
Porém, para além deste olhar enriquecedor (apesar da obviedade), outras considerações atreladas a ele podem surgir. Por exemplo, pode-se especificar mais claramente a questão da execução da música e a relação disto com aspectos históricos.
Costuma-se falar da associação da “música negra” – com seus elementos percussivos e cantos característicos – com a influência dos brancos, vista sobretudo na inclusão dos instrumentos de sopro e de cordas. Algo que é repetido a exaustão quando se fala das origens do Blues é o uso do violão e o “casamento” que ele representa. Tal como no samba brasileiro, diz-se que os negros “misturaram” sua música com a herança europeia ao adotar o violão.
Crossroad Blues, de Robert Johnson
Podemos realmente dizer que houve uma perfeita associação das heranças europeia e africana?
O arsenal teórico comumente usado pelos historiadores (mas também por antropólogos ou sociológos) pode auxiliar bastante na interpretação deste “casamento” entre as duas culturas.
Com a adoção dos instrumentos “dos brancos”, é comum que o senso-comum fale em “mistura” ou “associação” entre duas culturas. Tal ponto de vista pouco (ou nada) problematizado gera uma visão muito idílica das origens do Blues, portanto, muito afastada da realidade de conflitos, exploração e lutas.
É útil que o pesquisador se questione: o que é mais provável que tenha ocorrido na gênese deste gênero musical?
- Aculturação?
A adoção dos instrumentos “dos brancos” foi uma influência imposta gradativamente de forma sutil aos negros?
- Circularidade cultural?
É possível estudar este aspecto à maneira de Mikhail Bakhtin ou Carlo Ginzburg? Existia uma “circularidade” entre os elementos de uma cultura erudita e os de uma cultura popular, ou antes, de uma cultura dos exploradores e uma dos explorados?
- Apropriação?
Será que não foram os negros que, ao invés de aceitarem uma “aculturação” ao adotarem os instrumentos “dos brancos”, se apropriaram de tais instrumentos imprimindo-lhes um uso original, criativo e próprio de sua realidade?
Quando se estuda as peculiaridades da execução instrumental do Blues, temos a forte impressão de que os elementos originais nas composições dos negros se sobressaem a tal ponto que não seria exagero afirmar que eles reinventaram a maneira de tocar esses instrumentos.
Afinal, é possível definir o Blues?
A “teoria” musical do Blues: um campo a explorar
A estrutura harmônica do Blues possui traços característicos que a distinguem de outros gêneros musicais de forma clara. O que este tipo de harmonia pode dizer sobre a história do gênero?
Ao ouvir um Blues, as pessoas o distinguem imediatamente. Por quê? Alguém com o mínimo de formação musical sabe que é capaz de se reconhecer um Blues pelo andamento, pela escala utilizada, por dissonâncias características e também pelos acordes utilizados.
Tradicionalmente, a harmonia do Blues é feita baseando-se em acordes maiores com a 7ª menor. Vejamos mais detalhadamente como isto se dá:
A base de um acorde é o que, em teoria musical, se conhece como tríade: o 1º, o 3º e o 5º graus da escala.
Para exemplificar, vejamos como se forma um acorde de Dó maior.
Eis a escala de Dó:
Observando a escala, pode-se perceber que Dó é o primeiro grau (o Ré é o segundo e assim por diante). Então, para o acorde ele será a tônica (o que identifica qual é o acorde).
Deste modo, para formar um acorde de Dó maior, usar-se-á o primeiro, o terceiro e o quinto graus. Então, o acorde de Dó maior será formado pelas notas Dó, Mi e Sol.
Esta base de acorde formado por três notas, como dito acima, recebe o nome de tríade.
Para transformar este acorde de Dó maior num acorde de Dó menor, basta dminuir meio tom do terceiro grau. Ou seja, o acorde de Dó menor é formado por Dó, Mi bemol e Sol. O Mi bemol (ou Ré sustenido, tanto faz, pois muda-se o nome, mas a nota é a mesma) é a nota que está entre o Ré e o Mi. Entre estas duas há um intervalo de um tom, assim, como um tom é formado por dois semi-tons, existe um meio-tom entre os dois. Este intervalo de meio-tom entre o 2º e o 3º graus é usado quando se quer formar o acorde menor (por isso, desceu-se meio-tom a partir do 3º grau, chegando-se ao Mi bemol).
Além dos acordes em tríades, existem outros tipos de acordes, como aqueles formados por tétrades.
No caso das tétrades, o acorde é formado pelo primeiro, terceiro, quinto e sétimo grau da escala.
Como no caso das tríades, que podem ser maiores ou menores, a tétrade também pode ser de diferentes tipos. Exemplo: o acorde de Dó maior com a sétima menor será formado por Dó, Mi, Sol e Si bemol (assim como no caso da 3ª que desce meio-tom transformando um acorde maior em acorde menor, a 7ª maior seria o Si e a 7ª menor, por sua vez, é o Si bemol, meio-tom abaixo da 7ª maior).
Visto esses fundamentos, eis o que nos interessa: como são formados os acordes de um Blues?
De maneira característica, o Blues é composto com acordes que possuem a 7ª menor (é claro que existem variações, mas consideremos aqui a base tradicional do Blues). Além disso, geralmente usa-se apenas três acordes (todos com a 7ª menor):
- O primeiro grau (que dá o tom da música);
- O acorde que representa o 4º grau;
- O acorde que representa o 5º grau.
Se o tom de um Blues for em Dó maior, por exemplo, os músicos tocarão o acorde de Dó maior com 7ª menor, o acorde de Fá maior com a 7ª menor e o acorde de Sol maior com a 7ª menor (respectivamente, o primeiro, o quarto e o quinto graus da escala de Dó).
Ora, nos termos teóricos de músicas diatônicas (aquelas nas quais o tom é baseado na escala), isto é uma dissonância, não está, diríamos, “dentro do tom correto”. Mas isto não tem a mínima importância, pois é assim que se pode caracterizar um Blues. Se não fosse assim, dificilmente reconheceríamos a música como sendo deste gênero. Em outras palavras, a forma “errada” deu a característica de identidade do gênero.
Além da estrutura harmônica, existem outros elementos da execução musical do Blues que lhes são característicos.
Pode-se citar o uso da escala pentatônica com a inserção de uma nota dissonante entre o 2º e o 3º graus da escala, a chamada “blue note”. Esta inserção gera uma dissonância que ao invés de suscitar um desconforto aos ouvidos, permite, por exemplo, caracterizar como tipicamente “Blues” um solo de um instrumento.
A maneira distinta e peculiar de afinar os violões é outro exemplo da maneira não convencional que os criadores do Blues acostumaram-se a compor.
No que estas características podem auxiliar no âmbito do estudo da identidade cultural deste gênero musical?
É possível fazer um estudo histórico utilizando como fonte a execução musical de um gênero?
Os “erros” que vieram a caracterizar um gênero nascido no meio rural e criado por trabalhadores negros descendentes de escravos podem ter muito a dizer sobre a construção de identidade e a afirmação da cultura musical de um povo excluído.
Como considerações finais, podemos refletir sobre as potencialidades do gênero em questão para os historiadores.
Existem artigos, livros, sites e diferentes fontes de informação sobre o Blues para aqueles que desejam conhecer o gênero. Em sua maioria, são textos introdutórios e de caracterização geral.
Quando se trata de trabalhos acadêmicos, o número reduz drasticamente e o acesso já não é tão fácil.
Se nos limitarmos aos trabalhos de historiadores, fica ainda mais difícil encontrar algo para se informar.
Assim, embora se trate de um gênero muito admirado e com milhões de aficionados espalhados pelo mundo, existe ainda um imenso horizonte a ser explorado pelos historiadores quando o assunto é o Blues.